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26 de fevereiro de 2014

A Ucrânia, a UE e a Rússia 


Voltei a Kiev sexta-feira, dia 21 de Fevereiro, no dia seguinte ao massacre na Praça Euromaidan e sem saber se haveria sequer transporte do aeroporto para a cidade. Havia. Quando cheguei ao hotel as TVs anunciavam um acordo negociado entre os lideres da Oposição e o Presidente Yanukovich, com a ajuda de 3 ministros europeus e uma testemunha do Kremlin.

Desci à Praça Maydan - palavra que significa "independência" - e aí o pugilista e deputado Klitchko, ao anunciar o acordo, era assobiado pela multidão que há dois meses e meio não arreda pé: "não suportaremos o assassino Yanukovich: se ele não sai até amanhã de manhã, vamos buscá-lo!" avisou o orador seguinte.

Um grupo de jovens da Maydan, que me acompanhou de volta ao hotel nessa noite, admitiu que o acordo visasse travar o derramamento de sangue, mas realmente decisivo era a UE aplicar as sanções anunciadas: só assim os oligarcas por detrás dos mafiosos no poder sentiriam em risco os seus negócios e os haveres investidos em bancos austríacos e alemães, em companhias na Holanda, propriedades em Londres, etc...

Por todas essas razões, durante a noite Yanukovich pirou-se, só com os mais chegados. Sábado de manhã cedo jà as tvs filmavam os muros da sua extravagante propriedade nos arredores de Kiev, subitamente desguarnecidos de seguranças. Policias e militares, antes omnipresentes em qualquer esquina de Kiev, desapareceram por completo durante o fim de semana. Incrível a contencao, a sobriedade, o sentido cívico dos ucranianos, incluindo os milhares que afluíram a visitar as mansões abandonadas pelo presidente fugitivo e que não levaram nem um papel; tal como os milhares que depositavam cravos vermelhos nas barricadas carbonizadas, em tributo aos mortos pela libertação de um regime corrupto e autoritário.

Essa contenção reflecte a plena consciência dos ucranianos de que podem ter-se libertado do tiranete, mas têm pela frente durissimos desafios e ameaças: o poder não caiu na rua, o Parlamento logo assumiu as rédeas, marcou eleições e hoje mesmo deve ser anunciado um governo interino, que é indispensável até para o país poder assumir compromissos financeiros urgentes: a Ucrânia já estava a beira da bancarrota, mas a clique Yanukovich roubou o que pôde dos cofres do Estado nas últimas semanas.

As mais sérias ameaças vêm, como os ucranianos bem sabem, da vizinha Rússia, que não tolera que eles tenham a veleidade de não querer um regime oligárquico, subordinado e à imagem do de Putin. A esmagadora maioria dos ucranianos racionaliza que não se trata de escolher entre a Europa e a Rússia: a Ucrânia está amarrada pela geografia, pela história, cultura e pela dependência economica - que uma boa governação pode ultrapassar porque a Ucrânia pode tornar-se o celeiro do mundo. Mas para isso tem de saber viver com ambos os vizinhos - Europa e Rússia.

Ora, a arrogância de Moscovo fomenta o ultranacionalismo patológico russofobo das franjas da extrema-direita que aproveitaram a violência para cavalgar a praça Maydan e podem provocar incidentes revanchistas que assustem a comunidade ucraniana de língua e etnia russas, fornecendo a Moscovo pretextos para intervir militarmente, para além de todas as outras retaliações energéticas, económicas e políticas que Putin não deixará de infligir a um país que compromete as suas ambições de reconstituir o império.

E assim, cem anos depois da 1a guerra mundial, poderá ser de novo na Crimeia, onde está sedeada a frota russa do Mar Negro, que uma guerra civil, uma guerra europeia, se desencadeie. Apesar de eu ter ouvido em Kiev que tudo vai depender dos tártaros da Crimeia: ninguém na Ucrânia vai dar a vida pela Crimeia, se os tártaros quiserem voltar ao regaço da Mãe Rússia ...

O que se joga na Ucrânia, está para além dela. É também a relação da UE com a Rússia. Não se trata de instigar a Ucrânia a escolher entre a Europa e a Rússia : tanto a Ucrânia, como a UE, têm de viver e conviver com a vizinha Rússia. A UE - e os EUA - não podem é, de modo nenhum, aceitar que Putin putinize à força, contra a sua vontade, os ucranianos.

A UE está em crise política e, por isso, tanto amargamos em Portugal; tambem por isso sofremos, e cada vez mais sofreremos, as consequências da incapacidade da UE de ajudar a resolver problemas na sua vizinhança - da Líbia, ao Egipto, da Palestina ao deboche na Síria.

Mas na Ucrânia é de Europa, de europeus e de valores, princípios e objectivos europeus que estamos a tratar. Se a União Europeia falhar no apoio à democracia na Ucrânia, destrói-se.


NOTA: este foi o texto em que baseei o meu comentário no "Conselho Superior" na ANTENA 1 em 25.2.2014

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