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9 de julho de 2011

O que fica 

Por Vital Moreira

Assumindo inteiramente a derrota nas eleições de domingo passado, José Sócrates não tardou a tirar as consequências. Se bem que com mal disfarçada emoção, fê-lo sem dramatismo, num discurso sem ressentimentos nem passa-culpas, antes com grande dignidade e elevação. É nestas ocasiões que se mede a fibra e o caráter dos políticos.

O desaire do PS é tudo menos surpreendente, ainda que a sua expressão tenha sido mais pesada do que era geralmente previsto. Cumpriu-se a regra de que em tempos de crise e de austeridade, os partidos "incumbentes", qualquer que seja a sua orientação e o seu desempenho, pagam pesada fatura eleitoral. Portugal e o PS não são exceção nesta "lei de bronze" dos julgamentos eleitorais. O mesmo sucedeu recentemente no Reino Unido e na Irlanda e assim vai acontecer, segundo tudo indica, em Espanha dentro de poucos meses. Para esperar um resultado diferente teria sido necessário mudar toda a sociologia eleitoral.

Para mais, Sócrates teve de travar esta disputa eleitoral nas condições mais adversas que algum líder socialista algum dia enfrentou, tanto pela inesperada crise económica e financeira que não conseguiu travar como pela verdadeira frente de rejeição e de ódio "ad hominem", protagonizada pelos demais partidos, com a prestimosa cooperação da generalidade dos media, que nunca lhe perdoaram ele ter resistido à sistemática operação de "character assassination" a que se dedicaram durante anos sucessivos, a pretexto dos processos judiciais em que debalde o tentaram envolver.

Por mais que, nas atuais circunstâncias, haja tendência para reduzir a herança de Sócrates aos fatores que ditaram a derrota eleitoral socialista - ou seja, a crise económica, social e financeira e as políticas de austeridade tomadas para a combater -, o que a história política destes seis anos de governação socialista vai reter é necessariamente diferente, valorizando devidamente os resultados do primeiro mandato, antes do surgimento da crise, resultado que os dois anos seguintes, a lutar contra a crise, aliás em situação de governo minoritário, não podem de modo algum apagar. Se, por causa da crise e dos seus devastadores efeitos, não temos um país mais próspero, temos seguramente um Estado mais eficiente e uma sociedade mais livre e mais decente.

Em termos de governação, o que fica da era de Sócrates é desde logo a afirmação de uma notável convicção reformista na gestão do Estado e da administração pública e de determinação no combate às corporações e grupos organizados que desde há muito tinham colonizado o Estado. Basta referir, pela sua importância intrínseca e pelas resistências que foi preciso vencer, a eliminação dos injustificados regimes especiais no setor público, as profundas reformas na organização e ação da Administração, onde avulta a redução e racionalização das estruturas administrativas e os impressionantes progressos na modernização e na simplificação administrativa.

Em termos de políticas públicas, o que avulta é o profundo espírito de modernização da sociedade e do País e de valorização do capital humano e material, que inspirou tanto as reformas das relações de família como as políticas sociais (na educação, de saúde e de segurança social), bem como as orientações no campo da economia e das infraestruturas materiais.

A despenalização do aborto, a agilização do divórcio e a legalização do casamento das pessoas do mesmo sexo ficarão a marcar indelevelmente um verdadeiro avanço civilizacional no que respeita ao aumento da liberdade e autonomia pessoal e ao fim de tabus atávicos e de interdições arcaicas.

Também nunca se tinha sido tão ambicioso no aprofundamento e na busca de sustentabilidade do Estado social, na reforma do sistema de pensões, no alargamento e racionalização do SNS, na valorização e qualificação da escola pública, no alargamento do sistema de proteção social, incluindo no combate à pobreza.

E tampouco se tinha sido tão ousado no investimento na ciência, na inovação e na tecnologia, na reorientação da política energética e na melhoria das infraestruturas de transportes, se bem que o resultado quanto a estas tenha ficado longe dos objetivos, por efeito de um populismo atávico e das supervenientes constrições financeiras trazidas pela crise. Decididamente temos agora uma economia mais apetrechada para a competividade.

Não será porventura menos marcante a mudança no próprio PS. O que sai da liderança de Sócrates é um partido genuinamente social-democrata moderado e reformista, tão distante da esquerda de protesto ortodoxa e radical como da direita neoliberal e conservadora, um partido empenhado na harmonização da "economia social de mercado" com o Estado social e com a justiça social e apostado em assegurar a igualdade de oportunidades por meio da educação e da qualificação profissional. Quem quer que seja o seu sucessor na liderança partidária, dificilmente o PS deixará de trilhar a via traçada por Sócrates.

Sem nunca ter deixado de ter uma "má imprensa", flagelado permanentemente por acusações tão graves quanto infundadas, vilipendiado frequentemente por críticos e adversários, nunca nenhum governante, desde provavelmente Afonso Costa na I República, foi alvo de tanto ódio e tanto ressentimento político. Não precisarão, porém, de passar muitos anos para que uma avaliação serena reconheça os méritos da sua ação governativa. "Depois de mim virá..."

A crise económica e financeira que vitimou Sócrates passará a seu tempo, e também passarão os seus efeitos. Fechado o ciclo político que ele protagonizou, o que dele fica para o futuro é a contribuição para o progresso da liberdade pessoal, da condição social e do desempenho do Estado. Não há nenhuma "diabolização" pessoal capaz de apagar a história.

[Público, terça-feira, 7 de Junho de 2011]

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