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1 de maio de 2011

Sem margem para derivas intervencionistas 

Por Vital Moreira

Sem verdadeiro "challenger", Cavaco Silva foi re-eleito sem surpresa para segundo mandato presidencial. Mas o ressentido discurso de vitória - culminando uma campanha assaz infeliz - não deixa margem para dúvidas sobre a relativa insatisfação nas hostes cavaquistas. Não sendo propriamente glorioso o "score" alcançado - o mais baixo de sempre numa reeleição presidencial -, o sonho de uma presidência musculada no segundo mandato ficou decididamente abalado.

O primeiro dado a registar nestas eleições é a confirmação da regra da reeleição dos presidentes da República para um segundo mandato. A manter-se esta "lei de bronze", e ressalvada a ocorrência de qualquer acidente ou anomalia, teremos um Presidente por década, uma abissal diferença em relação à alta rotação do cargo na I República. Só a limitação constitucional dos dois mandatos é que impedirá a II República de disputar a artificial continuidade presidencial do "Estado Novo".

Trata-se de um fenómeno virtuoso, desde logo porque testemunha a satisfação geral dos cidadãos em relação ao desempenho dos presidentes. Não menos importante, a recondução dos incumbentes contribui para a estabilidade do sistema político. Na filosofia constitucional, o Presidente da República é um "quarto poder", encarregado de velar pelo regular funcionamento das instituições, dotado de funções de moderação de conflitos e de supervisão institucional. Convém que essa função essencialmente estabilizadora seja ela mesma estável.

O segundo dado digno de ser assinalado é a óbvia autonomia das eleições presidenciais em relação aos partidos políticos, aliás de acordo com a letra e o espírito da norma constitucional. Embora não possa ser desvalorizado o apoio dos partidos aos candidatos - sendo improvável a eleição de qualquer candidato sem esse apoio -, estas eleições confirmaram a grande discrepância entre o apoio dos partidos e os resultados eleitorais. É evidente que Cavaco Silva ultrapassou largamente as margens eleitorais do PSD e do CDS-PP, tendo colhido votos em todas as geografias partidárias, enquanto Manuel Alegre não conseguiu congregar sequer metade dos votos dos partidos que nominalmente sufragavam a sua candidatura. A votação cumulativa dos três candidatos à margem dos partidos - cerca de 20% dos votos - acentua essa autonomia partidária das eleições presidenciais.

Também aqui se trata de um facto positivo. Primeiro, a transversalidade da base eleitoral do Presidente da República reforça a sua legitimidade político-constitucional e consubstancia a sua tradicional autoqualificação como "presidentes de todos os portugueses". Segundo, a afirmação de candidaturas independentes mostra que as eleições presidenciais constituem uma plataforma de apresentação de visões políticas alternativas ao tradicional monopólio partidário da expressão política, sendo um fator de "refrescamento" político e de válvula de escape para as insatisfações e frustrações que não são canalizadas por via partidária.

O terceiro fator merecedor de registo foi a incontestada consolidação do modelo constitucional do Presidente da República. Não houve nenhuma proposta de maior presidencialização do regime nem de mudança nos atuais poderes constitucionais do Presidente. Com mais ou menos nuances sobre a declinação pessoal do entendimento do cargo, todos os candidatos presidenciais seguiram a pauta constitucional de um Presidente da República sem poderes executivos nem capacidade de ingerência na ação governativa, limitado àquilo que Mário Soares popularizou com a feliz fórmula de "magistratura de influência", sem prejuízo obviamente dos seus poderes institucionais fortes, como o poder de veto e o poder de dissolução parlamentar e de convocação de eleições parlamentares antecipadas.

Mais uma vez, convém aplaudir este largo consenso constitucional - que algumas vozes de contestação isolada não chegam sequer para perturbar -, que enterra definitivamente a antiga querela sobre os poderes presidenciais, afastando tanto a falta de poderes presidenciais nas repúblicas cem por cento parlamentares como o intervencionismo presidencial na esfera governamental, à imagem do "semipresidencialismo" francês.

Por último, importa analisar o significado político da reeleição de Cavaco Silva.

Para além de uma vitória face aos adversários (neste caso, concludente), uma reeleição é sempre, antes de mais, uma ratificação popular do primeiro mandato. Uma maioria confortável (ainda que em número menor do que os que o elegeram há cinco anos, dada a elevada abstenção) manifestou-se globalmente satisfeita com o desempenho de Cavaco Silva no seu primeiro quinquénio, apesar dos aspetos que muitos consideram menos positivos, como o abuso de vetos legislativos por motivos ideológicos, o excesso de intervenção pública, por vezes crispada - o que causou desnecessário ruído político -, e alguns episódios insólitos, como a surrealista estória da inventada acusação de vigilância governamental sobre Belém.

No quadro da inicial previsão de uma vitória esmagadora (próxima dos 60%), não faltou quem preconizasse uma ação mais musculada de Cavaco Silva no segundo quinquénio, a pretexto dos graves desafios com que o país se defronta. Porém, não sendo os resultados obviamente entusiasmantes, e ficando bem aquém dos ambicionados, deixa de haver condições para uma deriva presidencial intervencionista. A ratificação que Cavaco Silva recebeu do eleitorado vincula-o a manter o mesmo registo global de continência institucional e de moderação política que caracterizou o primeiro mandato. E a falta de um "landslide" eleitoral priva-o de autoridade política para ir mais além.

A continuidade do hóspede de Belém deve casar-se com a continuidade do seu desempenho.

[Público, terça-feira, 25 de Janeiro de 2011]

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