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1 de maio de 2011

Moções de censura 

Por Vital Moreira

Entre nós há uma banalização das moções de censura, transformadas em simples instrumento de guerrilha parlamentar e de prova de vida da oposição. Mesmo quando condenadas ao fracasso, como quase sempre sucede, podem porém em certas circunstâncias ser altamente perturbadoras da estabilidade política.

Em 35 anos de vida da Constituição de 1976 houve numerosas moções de censura, contra governos maioritários ou minoritários. Só uma delas alcançou o objetivo, a de 1987 contra o governo Cavaco Silva I, votada em conjunto pelo então PRD (que a apresentou) e pelo PS e PCP (que a secundaram). Em consequência dela, o Presidente da República optou por dissolver a Assembleia da República e convocar eleições (em vez de nomear um novo governo), das quais resultou a recondução de Cavaco Silva, com maioria absoluta. Para os vencedores da moção de censura, foi o que se chama "ir à lã e vir tosquiado"...

Tratou-se, porém, de um caso excecional, em que um governo minoritário enfrentava uma oposição maioritária de um dos lados, no caso à sua esquerda. Os demais governos minoritários nunca estiveram em tal situação assimétrica, de especial vulnerabilidade. Por isso, ou conseguiram chegar ao fim da legislatura (o que só sucedeu com o Governo Guterres I) ou caíram por outras razões, nomeadamente perda de moção de confiança (Soares I) ou autodemissão (Guterres II). Não por efeito de moção de censura.

Mas a regra histórica não pode servir de "lei". Mesmo fora das circunstâncias de 1987 pode vir o dia em que, se as condições se proporcionarem, uma moção de censura possa escolher apoios à esquerda e à direita de um governo minoritário, determinando a sua queda. E a simples possibilidade de ocorrer uma "coligação negativa" constitui um espetro permanente para qualquer governo minoritário e uma ameaça séria à estabilidade governativa.

Qual a justificação para a banalização das moções de censura entre nós? Para além de idiossincrasias próprias da nossa vida política - nomeadamente o papel dos "partidos de protesto" à esquerda, que precisam de fazer jus ao seu nome -, a principal razão está no facto de as moções de censura não envolverem nenhuma responsabilidade política para quem as apresenta. Pode-se avançar para uma moção de censura sem ter de apresentar nenhuma alternativa governativa e sem ter nenhumas condições para participar nessa alternativa.

Tudo seria diferente se a nossa Constituição estipulasse a "moção de censura construtiva", como sucede na Alemanha, na Espanha e em vários outros países, a qual passa pela necessária apresentação de uma alternativa de governo. A sua apresentação depende sempre do entendimento prévio entre os partidos interessados, pelo menos quanto à indicação de um candidato a primeiro-ministro e ao compromisso de apoiar a sua nomeação caso a censura seja aprovada.

Neste conceito as moções de censura implicam sempre uma "coligação positiva" dos seus apoiantes, pelo menos quanto ao apoio a um novo governo. As oposições só podem derrubar o Governo se estiverem dispostas a governar em vez dele no quadro do Parlamento existente, evitando impasses políticos e eleições antecipadas. Por isso, mesmo os governos minoritários têm condições de perdurar, se não houver alternativa maioritária.

Há muito que a moção de censura construtiva está na agenda da revisão constitucional entre nós, sob proposta do PS. Governando normalmente sozinho sem maioria parlamentar (dada a impossibilidade de alianças à sua esquerda), a moção de censura construtiva pouparia os governos PS à flagelação parlamentar desses partidos e ao risco de uma convergência dos mesmos com a direita.

Todavia, no caso português essa solução teria de ser harmonizada com o poder de dissolução parlamentar do Presidente da República, que ninguém quer afastar, não podendo ele ser obrigado a nomear um governo resultante de um entendimento interpartidário no quadro de uma moção de censura bem sucedida. Ressalvado esse poder, o Presidente só ficaria impedido de nomear um governo diferente do proposto pelos partidos autores da moção de censura.

Mesmo com a referida ressalva, a moção de censura construtiva manteria entre nós a sua função essencial de reforçar a estabilidade governativa, limitando fortemente a sua apresentação e aprovação, dada a exigência de entendimento governativo prévio entre os partidos apoiantes da iniciativa. Muitas das moções de censura apresentadas ao longo destes 30 anos (talvez mesmo a de 1987!) não teriam simplesmente sido apresentadas por incapacidade para cumprir esse requisito.

No entanto, até agora as propostas de consagração constitucional da moção de censura construtiva não têm vingado, por não terem tido o apoio dos demais partidos, incluindo o PSD. Os pequenos partidos, normalmente na oposição, não querem perder esse importante instrumento de ação política. O PSD invoca três argumentos: primeiro, tendo tradicionalmente facilidade de entendimento com o CDS, governa menos vezes em minoria; segundo, mesmo quando na oposição, não quer ser obrigado a negociar antecipadamente com o CDS a escolha de um primeiro-ministro, para poder apresentar uma moção de censura; terceiro, não quer excluir à partida a possibilidade de uma "coligação negativa" tácita com a esquerda radical (PCP e BE), para derrubar um governo minoritário do PS, sem ter de negociar com eles uma eventual solução governativa.

Resta saber se o "statu quo" não prejudica em geral os dois principais partidos governantes, dando aos pequenos partidos um poder desproporcionado, sem a correspondente responsabilidade, sacrificando a necessária estabilidade e responsabilidade política. Mesmo quando não matam, as moções de censura podem moer.

[Público, terça-feira, 15 de Fevereiro de 2011]

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