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14 de maio de 2011

Mais sociedade mercado 

Por Vital Moreira

A obsessão neoliberal pelo mercado leva os seus apóstolos a tentar transformar em mercadoria tudo o que mexe, incluindo os mais básicos serviços públicos de natureza social, tradicionalmente fora do mercado, como a saúde. Mas, de facto, se queremos ter um País socialmente decente, nem tudo pode ser sujeito ao império do mercado.

Recentemente entre nós o "think tank" político do PSD, "Mais Sociedade", e alguns dirigentes máximos do mesmo partido vieram reiterar a aplicação ao SNS dos dogmas mais característicos da teologia neoliberal, a saber, o princípio do utente-pagador e o princípio da liberdade de opção entre o SNS e o setor privado na prestação de cuidados de saúde. Associado a estes há um terceiro dogma, aliás corolário daqueles, o de que em princípio o Estado não deve ter a seu cargo a prestação de serviços suscetíveis de serem prestados por empresas privadas, mesmo que se trate de serviços que devam ser assegurados a toda a gente, devendo quando muito financiar ou subsidiar a sua aquisição no setor privado por quem não possa pagá-los pessoalmente. Mas nenhuma desses dogmas procede no setor da saúde.

Quanto ao pagamento ou copagamento dos cuidados de saúde no momento em que são necessários, por quem tem rendimentos suficientes para o fazer, nada pode justificar tal princípio. Os cuidados de saúde não são um serviço como os outros, em que se escolhe quando se adquirem e pelo preço que se pode, antes visam repor a saúde perdida quando isso ocorre, quase sempre independentemente da vontade e da ação de cada um.

Em qualquer sistema de saúde minimamente humanista toda a gente, mesmo quem tem elevados rendimentos, deve estar protegida contra as despesas em cuidados de saúde. Em princípio, ninguém adoece por opção, pelo que não é justo ter de suportar imprevistos custos dos cuidados de saúde no momento em que se necessita deles. Por isso, a necessária e justa diferenciação no financiamento da saúde em função dos rendimentos deve ser feita a montante, no momento em que cada um, independentemente de estar ou poder vir a estar doente, é chamado a contribuir para o fundo coletivo que deve custear o sistema de saúde, por qualquer das vias legalmente escolhidas (impostos, contribuição especial ou seguro de saúde obrigatório).

Também não é defensável a ideia de "opting out" do sistema público em favor do setor privado quando aquele existe e tem a obrigação e condições de servir toda a gente, como entre nós. Não que não possa haver separação entre financiamento público e provisão privada; há sistemas assim, embora em geral assaz dispendiosos. Mas a transição de um sistema de provisão pública para um sistema de provisão privada publicamente financiado pode ser incomportavelmente onerosa.

É evidente que há custos de estrutura do SNS que existem independentemente da utilização deste, pelo que o reembolso de encargos de saúde privados acresceria em grande parte aos encargos permanentes do SNS. O resultado seria um aumento considerável dos gastos públicos com a saúde. Mesmo que o SNS fosse "emagrecendo" à medida que aumentasse a opção pelo setor privado, a verdade é que a poupança de custos naquele manteria sempre uma "décalage" em relação à subida dos reembolsos dos cuidados de saúde privados. Aliás, logo à partida o Estado teria de suportar o reembolso das despesas no setor privado daqueles que já hoje a ele recorrem pelos mais variados motivos e não recebem nenhum reembolso.

A consequência da liberdade de opção financiada pelo Estado seria um crescente subfinanciamento do SNS, para compensar os gastos crescentes com os cuidados de saúde privados. Gerar-se-ia um círculo vicioso, em que a degradação da qualidade do setor público alimentaria ela mesma a fuga para o setor privado. Como a compensação pública nunca poderia cobrir 100% dos custos dos cuidados privados (incluindo os devidos lucros), haveria sempre uma parte da população inibida de recorrer ao setor privado por falta de meios para pagar a diferença. Nessa altura ter-se-ia realizado o sonho neoliberal, ou seja, um Estado reduzido ao papel de financiador ou subvencionador de cuidados de saúde privados, com um SNS residual e de "serviços mínimos" para quem não pode pagar a "majoração" de preço exigida pelos cuidados de saúde privados.

A verdade é que o mercado tem grandes limites na prestação de serviços como a saúde, onde são enormes as "falhas de mercado" e onde a equidade social exige uma acessibilidade universal e uma mutualização coletiva dos custos. É evidente que nada impede a existência de um mercado paralelo de cuidados de saúde, para quem o queira e possa pagar à medida das suas necessidades. É igualmente verdade que podem e devem ser utilizados "mecanismos de tipo mercado" na gestão do serviço público de saúde, para aumentar a sua eficiência, como a empresarialização dos hospitais e a aplicação das correspondentes regras de gestão. É igualmente justificável aplicar "taxas moderadoras" no serviço público de saúde, para combater a procura desnecessária ou caprichosa. Mas isso nada tem a ver com a submissão geral dos cuidados de saúde às regras do mercado e à prestação privada. A saúde só deve ser uma mercadoria para quem o queira.

O slogan "mais sociedade" não pode ser instrumentalizado como simples "window dressing" para sacrificar o sistema público de saúde no altar ideológico do fundamentalismo neoliberal de "mais mercado"...

[Público, terça-feira, 3 de Maio de 2011]

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