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30 de dezembro de 2010

O remédio é a transparência 

Por Ana Gomes

Não me tem surpreendido a telegrafia diplomática americana divulgada pelo WikiLeaks e pela imprensa internacional que se lhe associou. A diplomacia é isto mesmo: uma interpretação pessoal e politica dos interlocutores, suas motivações e contexto em que se movem, e um esforço de análise, pelo prisma do interesse nacional de cada país, daquilo que é feito e do que é dito, em privado e em publico. Como retorquiu um responsável russo aos apologéticos americanos: “Se vissem o que nós escrevemos na nossa telegrafia sobre vocês! …” E na verdade o WikiLeaks demonstra que a diplomacia americana funciona, para o bem e para o mal. E não são os EUA quem sai pior deste esparramar de roupa suja…
Os telegramas do Wikileaks expõem comportamentos inconfessáveis, injustificáveis, hipócritas, imorais, ilegais e até criminosos por parte de responsáveis governamentais em muitas latitudes. O que, por si só, já justifica amplamente a sua revelação, que pode contribuir para um ambiente democrático mais saudável do que aquele em que vivemos.
Muito do que é revelado pelo WikiLeaks era já sabido por quem segue de perto as relações internacionais e a política externa americana, em particular. Mas a divulgação da telegrafia credibiliza aqueles que se têm levantado contra as práticas dúplices e vergonhosas dos EUA e de muitos outros Estados, democráticos e não.
É embaraçoso? Sim, claro. Principalmente quando o que se diz em privado é o oposto do que é assumido em público. Não é, por isso, de espantar que os governos iraniano, paquistanês, etíope, afegão, saudita ou turco sejam os mais furiosos com os telegramas enviados para Washington. E que Madrid, Brasília, Maputo e outras capitais fervilhem agora à conta da exposição dos ministros e funcionários pressurosos a servir os americanos, ou de presidentes e governantes corruptos que enriquecem a proteger a criminalidade organizada.
Também há implicações perigosas para a segurança global e não apenas dos EUA: por exemplo, a revelação das instalações de segurança consideradas críticas por Washington; ou a admissão pela China da possível reunificação das Coreias, quando o regime tirano ainda dominante na Coreia do Norte não precisa de ser provocado para disparatar agressivamente. Mas as mais graves consequências dos WikiLeaks respeitam ao rombo na confiança entre os EUA e os seus parceiros, no plano diplomático e da “intelligence”, onde a necessária partilha de informações depende da confiança.
As recentes revelações sobre Portugal são preocupantes. A possibilidade de um banco nacional procurar fazer negócios num Irão sob sanções das Nações Unidas e da UE, à conta de um expediente de chico-esperto, é gravíssima. E não só por ter falhado e ser exposta, mas por indiciar a mais total falta de ética – quem se apresta a espionar o regime iraniano para ganhar dinheiro à sua conta, tambem se pode trabalhar para cartéis de droga, à pala de os fazer supervisionar pelas policias…. O Millenium BCP já desmentiu. Mas não basta – é vital o esclarecimento do que terá proposto ao Irão.
Os Wikileaks fazem tambem luz sobre a questão dos voos de transporte ilegal de prisioneiros. O MENE afirmou há dias na AR que o repatriamento de ex-prisioneiros de Guantánamo não tinha chegado a realizar-se, só tinha sido objecto de diligências pelos EUA. Dias depois, um telegrama de Setembro de 2007 indica que Portugal deu autorização para o efeito. Fico a aguardar que mais telegrafia americana confirme aquilo que eu venho dizendo e que o Ministro Luís Amado vem desmentindo…
Na semana passada estive nos EUA, em reunião regular entre membros do Parlamento Europeu e do Congresso norte-americano. O tema Wikileaks era incontornável: nos EUA há quem peça a cabeça de Julian Assange, mas também quem lembre o “First Amendment” constitucional que consagra a liberdade de expressão e publicação. Os colegas americanos admitiram o colossal falhanço de segurança na origem das fugas do Wikileaks: o circuito de distribuição dos telegramas foi alargado pela Administração Bush, dando ao Ministério da Defesa acesso à telegrafia do Departamento de Estado. Resultado: cerca de dois milhões de funcionários e militares poderiam lê-la (incluindo um qualquer cabo chateado num cú-de-judas no Iraque ou no Afeganistão…).
As tecnologias de comunicação permitem hoje a reprodução massiva de dados e a omnipresença da internet facilita a democratização do escrutínio popular. A diplomacia vai precisar de continuar a recorrer à confidencialidade nas comunicações: a eficácia de alguma acção exige-o. Mas isso não significa que governantes e diplomatas recorram sistematicamente à classificação reservada e, sobretudo, dêem desse modo cobertura a actuações inconfessáveis e criminosas. Nas questões mais sensíveis e secretas (durante um certo tempo, porque a desclassificação é inevitável e pode ocorrer muito mais cedo do que o previsto), é preciso circulação mais restrita e rigorosa.
Fundamental é reagir democraticamente à avalancha de revelações da Wikileaks. Ou seja, não à chinesa, com repressão e tentando obstruir a difusão da informação (o que é, de resto, ineficaz). Com a globalização e as novas tecnologias da informação, cada vez menos é possível - e desejável - manter secreto o que respeita à governação ou à diplomacia. Integridade, coerência e transparência são o remédio.

(artigo publicado no JORNAL DE LEIRIA de 16.12.2010)

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