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10 de julho de 2008

O espantalho e a sereia 

Por Vital Moreira

A tradicional agitação, à esquerda, do perigo de um governo de "bloco central" não passa de um conveniente espantalho para tentar "vender" na opinião pública uma suposta alternativa governamental de "esquerda plural". Mas, ao contrário do ponto de vista de André Freire no seu artigo de ontem aqui no PÚBLICO, esta hipótese é tão irrealista como a outra. E no dia em que o PS admitisse uma aliança de governo com o PCP ou o BE, não ficaria somente refém da sua irresponsável agenda extremista, mas também começaria a cavar o seu insucesso eleitoral, por efeito da perda do voto ao centro, sem o qual não é possível vencer eleições, nem governar. Dando o anel, o PS ficaria também sem os dedos.

Não é preciso grande dose de argumentação para demonstrar que não tem a mínima verosimilhança a reedição de um coligação PS/PSD, a 25 anos de distância, caso algum deles ganhe as eleições sem maioria absoluta. Primeiro, as condições de abissal desequilíbrio orçamental e das contas externas que justificaram a solução de 1983-85 não se colocam agora no horizonte. Ganhador das eleições sem maioria absoluta, após o rotundo fracasso do precedente governo da Aliança Democrática (AD), e sem garantia de solidariedade política do Presidente da República, o PS entendeu que não poderia solucionar a crise sozinho nem assumir os pesados sacrifícios financeiros e sociais (que incluíram um imposto especial retroactivo e a retenção do 13.º mês de remuneração dos funcionários públicos...). Em segundo lugar, o PS pagou muito caro essa experiência, quando o PSD, pela mão de Cavaco Silva, rompeu a coligação logo que lhe conveio, depois das dificuldades ultrapassadas, e quando o PRD, animado pelo ainda presidente Ramalho Eanes, tirando partido do descontentamento popular, arrebatou uma enorme fatia do voto de centro-esquerda (e até de esquerda), que desertou o PS, cobrando-lhe a factura dos sacrifícios impostos.

A lição de 1983-85 não pode ser esquecida pelos socialistas. Quando se aliam à direita no governo, beneficiam tanto a mesma direita, porque contribuem para "pagar as favas" da política desta, como os partidos à sua esquerda, que se aproveitam do compromisso de direita do PS para ocuparem o espaço político que ele desampara. Para dar campo livre ao radicalismo político, nada melhor do que equacionar a ideia de uma aliança de governo com a direita. Não pode haver ilusões sobre isso, nem o PS deveria deixar dúvidas a esse respeito.

O PS e o PSD são desde o 25 de Abril os partidos "naturais" da alternância governativa entre nós, suficientemente distintos entre si para significarem políticas alternativas em muitas áreas, não muito distantes entre si, para que a mudança de governo não seja encarada como um salto político no escuro. Por isso, quando um é governo, o outro deve liderar a oposição, sob pena de, ambos no governo, alimentarem a centrifugação política e darem alento aos extremos do arco político-parlamentar.

Mas entre a má memória do bloco central e a tentação de um governo da "esquerda plural", venha o diabo e escolha. Com o PCP e o BE que temos - assumidamente partidos de protesto anti-sistema -, a tentação de uma federação de governo à esquerda não seria menos deletéria para o PS, apesar da sua aparente lógica política. Não é por acaso, nem por qualquer anátema, que ao longo dos 32 anos de regime constitucional nunca se formou nenhum governo de "maioria de esquerda", embora tenham existido vários governos de coligação de direita (aliás em geral pouco duradouros). Fora da oposição, as alianças à esquerda sempre se limitaram a medidas políticas avulsas. Não é necessário dramatizar para verificar que subsistem as enormes diferenças doutrinárias e políticas de origem entre o PS e os partidos à sua esquerda, que aliás o tempo não tem ajudado a reduzir.

Pode convir aos defensores dessa solução tentar desvalorizar essas diferenças quando lhes interessa - isto, apesar de os dois putativos (mas nunca assumidos) candidatos ao matrimónio governativo com o PS não se cansarem de sublinhar as suas abissais divergências com este, a ponto de o elegerem como seu inimigo principal. Mas, mesmo que focássemos essas diferenças exclusivamente na questão crucial da integração europeia - esquecendo as fundas diferenças de atitude face à economia de mercado e à disciplina das finanças públicas, por exemplo -, só uma enorme candura ou oportunismo é que permite pensar que ela seria superável. Basta ver as alianças do BE e do PCP no Parlamento Europeu, bem como a sua recente reacção de júbilo face à rejeição do Tratado de Lisboa na Irlanda, para concluir que não é possível nenhum discurso comum nesta matéria central e transversal a todas as políticas, impossibilitando um mínimo de coerência e de solidariedade governativa.

Enquanto as "esquerdas da esquerda" não conseguirem distinguir entre a natural oposição às concretas políticas europeias - resultado do actual predomínio da direita no Parlamento Europeu e na Comissão, bem como nos órgãos intergovernamentais (Conselho de Ministros e Conselho Europeu) - e a necessária convergência nas opções "constitucionais" ditadas pela busca de uma maior integração europeia - como sucede quando estão em causa os tratados -, não se pode esperar nenhuma cumplicidade entre "europeus" e "antieuropeus" a nível de soluções governativas domésticas.

Ao contrário do que defende André Freire, não é verdade que uma votação reforçada no PCP e no BE torne um governo de bloco central "muito mais difícil". Primeiro, em qualquer caso, o bloco central é uma carta fora do baralho e uma "inventona" conveniente para o canto de sereia esquerdista; segundo, o que o reforço eleitoral dos partidos à esquerda do PS pode acarretar é, sim, a derrota deste e... a vitória da direita. Resta saber, aliás, se não é esta a hipótese que no fundo mais acalentam!

Publico, terça-feira, 24.06.2008.

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