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5 de outubro de 2007

O Tratado e a Europa no mundo 

(por Ana Gomes)

Recentemente na cimeira UE-Ucrânia repetiu-se a trágico-cómica proliferação de representantes da UE. De um lado, o Presidente e MNE ucranianos; do outro, uma bateria de líderes europeus que, com adjuntos e auxiliares, devem ter feito as delícias da indústria hoteleira de Kiev: a Europa esteve representada pelo Presidente do Conselho Europeu José Sócrates, assistido pelo seu MNE, pelo Presidente da Comissão Barroso, pelo Alto Representante para a PESC, Javier Solana, e pela Comissária para as Relações Externas, Ferrero-Waldner.
Para acabar com esta hidra institucional que se desmultiplica em 'cabeças', todas com responsabilidades e poder, confundindo parceiros brindados com tiradas grandiloquentes sobre o papel da '"Europa" no mundo', há uma resposta: está no Tratado Reformador, cujo texto a Presidência portuguesa se esforça por fixar na Conferência Intergovernamental (CIG).
E que trará o Tratado de relevante para a acção externa da União? Para começar, a UE passa a ter estatuto jurídico próprio. Por incrível que pareça, até hoje a UE não pode assinar tratados e acordos: a "Europa" só existe através da Comissão Europeia (CE) e dos Estados Membros (EMs). Uma das consequências é o facto de a representação diplomática da “Europa” no mundo ficar a cargo da Comissão e de uma miríade de embaixadas dos EMs – frequentemente com agendas conflituais.
Isto significa na prática, por exemplo, que Javier Solana - pomposamente intitulado 'Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum' - nem sequer tem "olhos" e "ouvidos" próprios. A informação e a capacidade de Solana de interagir com actores externos está dependente da generosidade/incapacidade da CE e dos EMs. O Alto Representante é uma espécie de colosso institucional cego e surdo, cambaleando pelo mundo, apoiado nos ombros relutantes da CE e de alguns EMs. Mais! Solana nem sequer pode marcar a agenda europeia porque não tem direito de iniciativa no Conselho. Espera-se dele que actue como moço de recados dos EMs, cujas prioridades mudam ao sabor das Presidências semestrais. A sua única vantagem é que elas passam ...e ele vai ficando.
Tudo isto deverá mudar no dia em que o Tratado Reformador entrar em vigor. Criar-se-à a figura do Alto Representante da União para a Política Externa e de Segurança, que acumulará as funções actuais de Solana com as de Comissário para as Relações Externas. E passa a presidir ao Conselho de Assuntos Gerais e de Relações Externas (onde reúnem os MNEs dos 27 EMs), podendo avançar com propostas próprias. Fundamental também é que o seu trabalho vai ser apoiado por um Serviço de Acção Externa da UE, composto pelo pessoal das representações da Comissão em todo o mundo e por diplomatas destacados pelos EMs, num total previsto de cerca 7000 pessoas.
Como vêm sublinhando os representantes do Parlamento Europeu na CIG (Elmar Brok (cristão-democrata alemão), Andrew Duff (liberal britânico) e Enrique Barón Crespo (socialista espanhol), importa não ceder mais às exigências de um país, a Grã-Bretanha (a Polónia funciona aqui instrumentalmente), que insiste em diluir as conquistas principais da malograda Constituição: é essencial preservar o estatuto juridicamente vinculativo da Carta dos Direitos Fundamentais e a definição de “cidadania europeia”. Mas é essencial também não permitir que britânicos ou outros ocasionais “soberanistas”, que já conseguiram descrismar o «Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE» previsto na Constituição, enfraqueçam mais a construção institucional que é vital para que a Europa passe a ter uma intervenção coerente e decisiva no mundo.
As expectativas dos cidadãos europeus e dos parceiros globais da Europa excedem de longe, por enquanto, as capacidades da UE: todos evocam as "responsabilidades da Europa". Por isso é importante que todos tenham consciência de que o novo Tratado é estratégico para que Europa deixe de ser o gigante económico que é políticamente anão.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 28.9.2007)

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