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16 de outubro de 2007

Ainda os capelães 

Por Vital Moreira

Há muito tempo que não existia uma campanha política assim - a da Igreja Católica e seus apoiantes contra a reforma do regime de assistência religiosa nos hospitais -, baseada na desinformação ostensiva, no alarme infundado e na ameaça despropositada. De facto, o mais extraordinário nesta ofensiva foi o recurso a flagrantes falsificações sobre o conteúdo da revisão proposta.
Subitamente, os cidadãos foram alertados para um nefando projecto governamental que, no mínimo, vinha dificultar e, no máximo, vinha extinguir a assistência religiosa. O Correio da Manhã foi ao ponto de relatar que "o cardeal-patriarca de Lisboa criticou ontem o Governo por causa do diploma que prevê o fim dos capelães nos quadros hospitalares, cessando igualmente a assistência espiritual aos doentes internados (...)". Havia pelo menos três acusações repetidas à saciedade: (i) que os capelães pagos pelo Estado iam ser despedidos; (ii) que só teriam assistência religiosa os doentes que o pedissem pessoalmente por escrito; (iii) e que só haveria assistência religiosa no horário das visitas.
Aos interessados seguiram-se os prosélitos. Na sua prática dominical da RTP Marcelo Rebelo de Sousa condenou as supostas intenções de reduzir a assistência religiosa às horas das visitas (mesmo em situações de urgência), ou de a disponibilizar somente a quem pessoalmente solicitasse por escrito (mesmo em situações de impossibilidade pessoal). Aqui, no PÚBLICO, Graça Franco denunciou e verberou a impossibilidade de o doente ser "substituído por familiares, amigos ou funcionários hospitalares".
E aos prosélitos seguiram-se os comentadores de várias extracções, que, sem se questionarem sobre a credibilidade das acusações, se apressaram a verberar uma imaginária ofensiva "laicista" e "jacobina" contra a Igreja Católica e contra os direitos dos doentes internados nos hospitais.
O problema é que se tratava de excesso de imaginação e invenção dos interessados. Afinal, o projecto governamental não contém nenhum dos alegados aspectos. Extingue para o futuro o regime das capelanias, mas mantém as que existem até que vaguem, ao mesmo tempo que o novo regime assegura o pagamento dos serviços de assistência em si mesmos. Também não exige uma solicitação pessoal dos próprios doentes, antes permite explicitamente que o pedido seja feito por familiares ou amigos próximos, para além de que a assistência pode ser prestada por iniciativa dos próprios ministros do culto, sem solicitação específica dos doentes (ou de outrem), sempre que estes tenham indicado, querendo, a sua religião para efeitos de assistência religiosa. E tampouco limita a assistência ao horário das visitas; pelo contrário, estabelece explicitamente que ela pode ocorrer em qualquer altura em que seja solicitada, preferencialmente fora das horas das visitas.
É certo que, incompreensivelmente, o Ministério da Saúde não se deu ao trabalho de responder às falsidades espalhadas, nem sequer disponibilizou publicamente o projecto de diploma. Mas era evidente para qualquer espírito despreconcebido que pelo menos algumas das acusações (como a respeitante ao horário da assistência religiosa ou à impossibilidade de o pedido de assistência ser feito por outrem em caso de impossibilidade do doente) não podiam ser verdadeiras. Era exigível por parte dos acusadores e comentadores uma obrigação de verificação dos dados, antes de veicular ideias falsas e de alinhar com uma campanha pouco séria contra um projecto que desconheciam.
De resto, também não são procedentes duas objecções contra soluções efectivamente constantes do projecto governamental, a saber, a exigência de pedido por escrito e a proibição de os profissionais de saúde interferirem no pedido de assistência religiosa.
A primeira objecção ainda pode fazer algum sentido, na medida em que pode haver outras formas de expressar o pedido, embora menos seguras e inequívocas. Mas não se deve esquecer que o projecto de diploma não exige uma solicitação específica para cada acto de assistência religiosa, bastando que no registo de entrada o doente ou seu acompanhante declare a sua religião para efeitos de assistência religiosa, o que habilita o respectivo ministro do culto a dirigir-se ao doente, sem qualquer pedido adicional. Já a segunda objecção não faz qualquer sentido. No exercício da sua missão, os profissionais de saúde estão vinculados ao mesmo dever de neutralidade religiosa do Estado. Além disso, admitir que eles pudessem interferir nesta matéria, seria dar lugar a toda a espécie de abusos, seja ao proselitismo religioso dos profissionais crentes ou ao proselitismo anti-religioso dos profissionais agnósticos ou ateus.
Um dos aspectos mais censuráveis do projecto governamental é a remuneração dos serviços de assistência religiosa pelo Estado. Se, fora dos hospitais, a assistência religiosa constitui um encargo dos interessados, por que é que, no caso dos internados num estabelecimento público, esse serviço passa a ser suportado pelo Estado? O Estado só deve remunerar ou subsidiar actividades que fazem parte das suas atribuições ou que ele tem obrigação de apoiar ou fomentar. Ora, num Estado laico, a assistência religiosa não é uma tarefa do Estado, nem pode fazer parte da sua missão. Por isso, é manifestamente ilegítimo o gasto de recursos públicos numa actividade a que o Estado deve ser alheio.
Em toda esta polémica, se a Igreja Católica continua fiel à sua tradição "constantiniana", já não se entende a posição de cedência do Estado.
Quanto à Igreja, seria ilusório esperar que prescindisse sem resistência de prerrogativas e de benesses oficiais, que abdicasse do estatuto de capelães oficiais, funcionalizados e remunerados pelo Estado, e que assumisse a assistência religiosa como tarefa exclusivamente sua, e não do Estado. Mas as coisas são como são. Vem longe o dia em que a Igreja Católica renuncie a instrumentalizar o Estado ao seu serviço e a largar o lugar cativo à mesa do Orçamento.
Já se entende menos a constante posição defensiva do Estado. A abertura da assistência religiosa aos crentes de todas as religiões e a extinção dos capelães oficiais vêm com 30 anos de atraso. Trata-se não só de pôr fim a uma situação de privilégio indevido, em flagrante violação do princípio da separação, mas também de corrigir uma iniquidade contra as demais religiões, além da católica. Com a presente iniciativa, o Governo faz o que há muito deveria ter feito, a saber, assegurar o direito à assistência religiosa a todas as religiões, facilitar a todas elas a satisfação das necessidades religiosas dos seus crentes e, "last but not the least", garantir o respeito pela liberdade individual dos não crentes.
Não tem de fazer mais do que isso, nem deve.
(Público, 3ª feira, 9 de Outubro de 2007)

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