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17 de setembro de 2007

Ir à lã e sair tosquiado 

Por Vital Moreira

Mesmo que Francisco Teixeira da Mota (PÚBLICO de sábado passado) entenda encerrar a polémica comigo sobre o novo Estatuto do Jornalista, que ele iniciou, não pode ficar sem a devida resposta a sua tentativa de me associar a uma pretensa "ofensiva socialista contra a liberdade de informação". Não sei de onde lhe vem a autoridade para tal, mas razão não tem nenhuma. E mesmo numa polémica há limites para o "terrorismo retórico"!
Para começar, falar de "trelas, mordaças e canga" - título do seu artigo -, a propósito da institucionalização da responsabilidade deontológica dos jornalistas, não é somente descabido. É também uma mistificação, visto que não foi minimamente contestada a distinção essencial, de resto óbvia, entre obrigações deontológicas e limites à liberdade de imprensa. A responsabilidade por infracções profissionais não afecta a liberdade de informação nem de opinião dos jornalistas, apenas pune práticas jornalísticas ilícitas. Como é que se pode considerar como "trela, mordaça ou canga" a punição de um jornalista que, por exemplo, publique uma história favorável a alguma instituição, a troco de alguma vantagem pessoal? Haja decência!
Em segundo lugar, trazer a uma discussão sobre a responsabilidade deontológica dos jornalistas outras questões que nada têm a ver com ela, incluindo decisões judiciais restritivas da liberdade de imprensa, só pode considerar-se uma tentativa de atirar areia para os olhos. Só faltava acusar a tal nefanda "troika socialista" (na qual fui incluído) de ser também responsável pelas referidas orientações jurisprudenciais (que, aliás, tenho criticado).
Dando por perdida a impossível defesa da irresponsabilidade e da impunidade profissional dos jornalistas, os seus opositores concentram-se na luta contra a atribuição da competência sancionatória à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas. Preconizando eu essa solução desde há muitos anos, sem escândalo para ninguém, continuo a considerá-la não só acertada mas também a mais óbvia (além de ser a mais económica em termos institucional e financeiros). Basta ampliar as suas funções. De facto, essa comissão já existe entre nós há muito tempo, exercendo poderes de regulação da profissão, sem nunca ter sido considerada uma solução exótica ou "aberrante".
Contra esta solução não basta dizer que não tem equivalente lá fora, pois tal argumento de pouco ou nada vale em si mesmo, dada a grande variedade dos formatos de regulação profissional (e mesmo de auto-regulação) admissíveis. O que é preciso é demonstrar que ela é má e que há uma alternativa melhor. Todavia, nem uma coisa nem outra foram demonstradas.
Quanto à CCPJ, ninguém conseguiu argumentar convincentemente que um organismo independente - que segundo a nova lei será composto exclusivamente por jornalistas designados paritariamente pela profissão e pelos operadores (mais o presidente, por eles cooptado), e que já tem poderes de regulação da profissão, incluindo a verificação das incompatibilidades profissionais - não é uma solução adequada para verificar e sancionar as infracções a outros deveres profissionais, como genuína modalidade de autodisciplina profissional. Quanto à alternativa, os opositores limitam-se a apontar para vagas formas de "auto-regulação", não especificadas, o que é uma não-resposta, pois não se vê como é que pode haver jurisdição sobre toda a profissão se não tiver força de lei.
É claro que havia hipoteticamente a solução da ordem profissional - que existe na Itália e em diversos países da América Latina -, que alguns jornalistas acarinham desde há muito entre nós, porém sem convencer a generalidade da classe. Ora, mesmo que o Estado devesse favorecer essa solução - e, a meu ver, não deve, dada a "pulsão corporativista" das ordens, que no caso do jornalismo poderia ser um risco para a autonomia profissional -, a verdade é que sempre se teria de considerar politicamente inaceitável impor unilateralmente uma associação pública obrigatória a uma classe profissional que a não pediu.
Seja como for, a oposição ao Estatuto do Jornalista irmanou oportunisticamente tanto aqueles que são contrários a qualquer institucionalização de uma responsabilidade deontológica, que consideram uma ingerência intolerável na liberdade profissional (sendo a questão da CCPJ um simples pretexto), como os que são partidários de uma ordem dos jornalistas, obviamente favoráveis à disciplina deontológica (divergindo só no modo de a efectivar).
Ambas perderam, porém, a grande operação de contestação em que se envolveram, que passou por um bombástico abaixo-assinado e uma insólita manifestação em frente ao Palácio de Belém para exigir o veto presidencial ao estatuto. O veto veio e foi festejado. Mas logo chegou a decepção. O Presidente não questionou nem a punição disciplinar das infracções profissionais nem a competência da CCPJ; pelo contrário, considerou que o regime sancionatório proposto podia saldar-se em sanções demasiado leves para as infracções muito graves. Por isso, a reapreciação parlamentar do diploma vai seguramente corrigir essa inconsistência.
É caso para dizer que a contestação "foi à lã e saiu tosquiada" (tornando-se o Presidente cúmplice da cavilosa conspiração contra a liberdade de informação...). Mas não foi vencida somente no plano legislativo (que, aliás, neste ponto não se limitou ao voto do PS) mas também no plano de debate público, porque os seus partidários não conseguiriam convencer ninguém, para além deles próprios, das insondáveis razões para a irresponsabilidade deontológica e a impunidade disciplinar dos jornalistas. E quando uma causa não tem mérito, não há patrocínio que lhe valha, por mais qualificado que seja...

(Público, 3ª feira, 11 de Setembro de 2007)

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