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5 de fevereiro de 2007

IVG: SIM, pela vida 

por Ana Gomes

No dia 11 de Fevereiro vou votar SIM. Determinadamente. Porque levo na cabeça uma cena que não julgava já possível em Portugal, no século XXI: a daquela mãe que chorava, num corredor do Tribunal de Aveiro em 2004, depois de me contar o terror que vivia há anos, desde que a filha adolescente, à saída de um consultório médico, fora arrastada por dois polícias para dentro de um carro, levada ao hospital e forçada a submeter-se a exames ginecológicos. Na sala ao lado estava a filha sentada no banco dos réus, acusada de aborto - seis anos depois, já casada e gravidíssima. A mãe ficara a saber, no tribunal, que toda a família fora alvo de escutas telefónicas anos a fio. Mas o mais opressor era o medo: que o genro, vizinhos e parentes na vilória onde moravam, descobrissem que estavam ali, tratadas como infames criminosas. «Tenho a vida destroçada, o meu marido já não aguenta mais: ontem insistia que nos enfiássemos os três no carro e nos lançássemos por uma ribanceira abaixo!...»
O que me determina é a vontade de acabar com a monstruosa violência do Estado e da sociedade contra mulheres e famílias como aquela. Um Estado que manda fragatas contra navios com gente que vem para informar. Um Estado que selectivamente, contra mulheres pobres, se lembra às vezes de tentar impôr a lei. Um Estado que incentiva a hipocrisia social, agarrado a uma lei que ninguém respeita.
É o sofrimento atroz, irreparável, de milhares de portuguesas e portugueses o que está em causa. Não podemos permitir que continue. Porque o que vai ser referendado no dia 11 de Fevereiro não é, de facto, o aborto. É o Código Penal. O aborto, esse vai continuar a fazer-se. A questão é como, quando e quanto.
Como: se continua clandestinamente, condenando as portuguesas pobres a vexames e inseguranças, incluindo as do vão-de-escada (as outras abortam sem problemas, no estrangeiro ou em clínicas nacionais que dão outros nomes à intervenção). Ou se, pelo contrário, graças ao SIM, a IVG passa a ser feita em estabelecimento de saúde autorizado, assegurando a todas as mulheres condições de higiene e de acompanhamento médico que não agravem a dor, física e psicológica.
Quando: se, ganhando o SIM, se faz a IVG só no início da gravidez, até às 10 semanas, ou se se continua a fazer descontroladamente, até muito mais tarde. Não, não se trata de referendar a ?liberalização? do aborto, mas sim de despenalizar, isto é, de descriminalizar a IVG até às dez semanas. Porque liberalizado já está, de facto, o aborto: em roda livre, como tudo o que é clandestino e ninguém controla - nem locais ou condições em que é praticado e sem exigir reflexão.
Quanto: se, com a vitória do SIM, vamos progressivamente reduzir o número de abortos e aumentar a maternidade consciente em Portugal. Ou se vamos continuar a deixar o aborto e o negócio ilegal proliferar. Não é por a IVG passar a ser legal até às dez semanas que vão multiplicar-se os abortos - nenhuma mulher passará a gostar de se submeter a tal operação. Pelo contrário, a prazo, a despenalização fará diminuir os abortos, como provam as estatísticas dos nossos vizinhos europeus. Menos abortos e mais nascimentos porque com o SIM vai haver aconselhamento médico para todas as mulheres, incluindo as pobres e pouco informadas.
O que está em causa no referendo de 11 de Fevereiro também não tem a ver com as crenças «científicas» ou religiosas sobre o início da vida humana. O SIM não visa impor a ninguém uma conduta contrária às suas convicções - quem tiver objecções de consciência ou religiosas contra a IVG, que a não pratique. A actual lei já despenaliza a IVG em certos casos. Quem sustenta o «direito à vida» dos embriões devia, em coerência, assumir a oposição a tudo o que mata, maxime a guerra, quaisquer guerras. (Mas onde estavam muitos dos vociferantes do «não», quando foi invadido o Iraque, por exemplo?)
O referendo do dia 11 não versa também sobre o financiamento da IVG. Particularmente repulsiva, neste aspecto, é a campanha de quem se diz «pró-vida» e, afinal, bem longe de considerações éticas, recorre a argumentos economicistas e demagógicos.
Pelo meu lado, não quero contribuir com os meus impostos para mais violações dos direitos humanos de portuguesas, cometidos por polícias, pessoal hospitalar e magistrados que as submetem a perseguições, exames médicos forçados e interrogatórios. E não quero continuar a pagar a governantes, políticos e agentes do Estado que, por acção ou omissão, colaboram na humilhação, devassa e aviltamento de mulheres que optam por abortar no início de uma gravidez não desejada.
Este referendo não é a favor ou contra o aborto, pois ninguém, em perfeito juízo, pode ser «adepto» do aborto. Este referendo é sobre uma lei que oprime as mulheres e não evita o aborto.
Votar SIM, é votar pela liberdade, mas contra a «liberalização» do aborto. Votar SIM é votar contra o aborto clandestino. Votar «SIM» é votar pela maternidade e paternidade consciente, desejada.
Eu voto SIM. Pela vida.

(publicado no PÚBLICO, em 5.2.2007)

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