<$BlogRSDUrl$>

31 de agosto de 2006

Partidos e eleitos partidários 

Por Vital Moreira

Uns gritaram "escândalo". Outros falaram num "expropriação do mandato popular". Outros ainda denunciaram a "ditadura dos partidos" sobre os eleitos. Por mim, não acompanho o criticismo generalizado que o caso do afastamento do presidente da Câmara Municipal de Setúbal (CMS) por decisão do PCP motivou por parte de tantos observadores.
Comecemos por clarificar um equívoco. O presidente da CMS não perdeu o mandato só porque o partido assim "decidiu". Os partidos não têm tal poder, nem poderiam ter. Foi o próprio presidente que renunciou ao mandato, por determinação partidária, é certo, mas que ele aceitou, sem ser obrigado a isso. Se saiu, foi porque entendeu que o devia fazer; ou porque não tinha condições para continuar ou simplesmente porque tal é a norma no PCP, onde o que a direcção manda é para os militantes acatarem sem discussão. Mas se o "centralismo democrático" do PCP é censurável (e peço meças na sua condenação...), já não vejo por que é que se "branqueia" a submissa obediência dos seus militantes, mesmo quando no exercício de mandatos electivos. Se houve alguém que "traiu" a confiança dos eleitores setubalenses foi menos o PCP do que o próprio presidente cessante, que obedeceu como cordeiro sacrificial ao diktat do partido. Apresentar as coisas como se houvesse aqui um algoz e uma vítima é confundir as coisas.
Sem dúvida que há aspectos censuráveis no episódio setubalense. As razões formalmente invocadas pelo PCP (necessidade de "renovação" do executivo camarário, etc.) são pelo menos risíveis, tendo em conta que o mandato vai em menos de um ano. Se, como parece seguro, o PCP pode ter dados que o levassem a temer que o inquérito oficial ao caso das fictícias aposentações compulsivas na CMS pudesse levar à perda de mandato do presidente, com os inerentes custos políticos para o partido, foi pena, porém, que não tenha deixado transparecer essas razões. Mas, a menos que as verdadeiras razões lhe tivessem sido apresentadas pessoalmente, a aceitação acrítica da censura partidária pelo ex-presidente é tanto ou mais criticável. Tanto um como outro deviam explicações aos eleitores. Ambos falharam redondamente. Estão bem um para o outro!
Deixando o caso concreto, cujos contornos e protagonistas obnubilaram uma discussão serena e racional da questão, importa ver se no nosso sistema político deve ou não reconhecer-se aos partidos políticos um poder (ou mesmo um dever) de acompanhamento do desempenho dos seus eleitos, sendo ou não de reconhecer uma responsabilidade dos titulares de cargos electivos de base partidária não somente perante os eleitores, mas também perante os seus próprios partidos. Entendo que ambas as questões devem ter uma resposta positiva e que em última instância podem justificar o abandono dos cargos pelos seus titulares, se não quiserem arrostar com uma ruptura com os partidos por que foram eleitos. Falamos de cargos executivos, mas mesmo nas assembleias representativas, onde não pode prevalecer a lógica do "mandato imperativo", mesmo aí não pode conceber-se o mandato à sua imagem liberal oitocentista, como se os deputados não representassem também os seus partidos.
Numa "democracia de partidos", como a nossa é indubitavelmente, os cargos electivos (com a excepção notória do Presidente da República) são providos por via partidária. Mesmo no caso das autarquias locais, onde os partidos já não gozam do monopólio de candidatura, as hipóteses de eleição à margem dos partidos são muito reduzidas, como a experiência mostra, sendo as raras excepções protagonizadas por candidatos que já estavam no exercício dos cargos e que foram afastados ou se afastaram dos respectivos partidos (casos recentes de Felgueiras e Oeiras). Por isso, não só é natural, como até é desejável, que os partidos mantenham um escrutínio sobre o exercício do mandato dos seus eleitos e possam mesmo retirar-lhes o apoio e instá-los à demissão, caso vejam motivo para isso, desde as que razões sejam transparentes e desde que se mantenha, em última instância, a liberdade individual do titular do mandato. Num sistema democrático em que os protagonistas são os partidos, a responsabilidade política dos titulares de cargos políticos começa por ser perante os próprios partidos que veicularam a sua eleição.
Afinal, o mau desempenho dos cargos políticos reflecte-se também, e sobretudo, sobre os respectivos partidos e sobre as hipóteses de manutenção das posições políticas conquistadas. Se um partido conclui que um seu eleito está a ter uma performance negativa, lesando o crédito político do partido e pondo em sério risco a hipótese de renovação do mandato nas eleições seguintes, é de todo justo que aquele o censure, e que, se necessário, lhe retire a confiança política e o inste a deixar o cargo. Por outro lado, os titulares de cargos electivos são eleitos na base de um programa que exprime a doutrina e as perspectivas do respectivo partido. Como negar o interesse legítimo dos partidos em velar pela execução desse programa? Não pode censurar-se, como é moda, a "descaracterização" doutrinária dos partidos políticos, e depois advogar uma total autonomia dos titulares de cargos políticos, apesar de eleitos para representarem os seus pontos de vista.
Pode mesmo dizer-se que um dos males da nossa democracia é o desmazelo partidário na avaliação "concomitante" do desempenho dos seus eleitos. No caso do poder local, esse défice de avaliação pode ser devastador em muitos municípios, dada a presidencialização e personalização do poder, a debilidade da oposição e a falta de "poderes contrapostos". Muitas vezes a oposição é "comprada" pelo presidente da câmara (uns vereadores a tempo inteiro, uns cargos em empresas municipais, etc.) e os poderes externos (associações, bombeiros, clube de futebol, jornais locais) estão devidamente controlados pelo poder municipal (quanto mais não seja, à custa de subsídios). Se não for o próprio partido nacional a exercer algum controlo, quem controla?
É claro que se pode defender que, dada a dimensão cada vez mais personalizada que assumem as eleições para as câmaras municipais - em que a figura dos candidatos tem um papel crescente na escolha dos eleitores -, não deveria ser possível substituir o presidente sem novas eleições, como a lei permite. Mas isso é outra questão, a jusante daquela. Politicamente, esta solução é altamente questionável, dada a personalização que a escolha eleitoral hoje assume a nível do executivo autárquico. Aqui, sim, pode falar-se em desrespeito da vontade eleitoral, ao elevar a presidente da câmara quem a tal não foi candidato, não tendo sido eleito pelos eleitores para tal cargo. Por isso há boas razões para defender que a vagatura deveria provocar automaticamente eleições intercalares. (De resto, voltando ao caso concreto, nesta matéria o PCP está muito mal colocado para descartar novas eleições, já que no caso Santana Lopes defendeu que ele não deveria ser nomeado primeiro-ministro, por não se ter submetido a eleições - sendo certo que não se trata sequer de um cargo electivo -, o que justificaria, por maioria de razão, as eleições no caso da substituição de um presidente da câmara.)
Eis uma questão para tratar na adiada reforma do sistema de governo das autarquias locais. Se forem para a frente (oxalá, não!), as propostas de hiperpresidencialização do governo municipal que o PS (e parcialmente o PSD) apresentaram, então é imperioso que a vagatura do cargo de presidente conduza a novas eleições (salvo se juntamente com o presidente for também eleito um vice-presidente, nessa qualidade). De outro modo, a democracia local sofreria um rude golpe.
(Público, Terça-feira, 29 de Agosto de 2006)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?