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19 de julho de 2006

Ainda a crise timorense 

por Ana Gomes


Leituras simplistas e ignorantes em Portugal vêem a crise em Díli como se se tratasse de um braço-de-ferro entre agentes pró e anti-portugueses. Há até quem associe Ramos Horta, o novo PM, a interesses australianos ou americanos. Nunca deixei de o criticar, pessoal e publicamente, sempre que dele discordei. Mas não cometo a injúria, nem o grave erro, de atribuir a Ramos Horta desígnios hostis a Portugal ou tendentes a reduzir a influência portuguesa em Timor Leste, e em especial a da língua - que ele, como ninguém, sempre defendeu como estruturante da nação timorense. Só temos de nos culpar a nós por não se falar já mais português em Timor - e os nossos professores e os seus alunos, sem rádio, TV e jornais em língua portuguesa, conseguiram autênticos milagres.
Outros comentadores, que nunca se deram ao trabalho de pôr pé em Timor, desunham-se agora para nos entranhar uma nova e redutora esquizofrenia: um «inimigo» estrangeiro dá jeito para explicar insuficiências próprias. E desta vez não é indonésio, é australiano.
Os interesses estratégicos de Camberra são naturais: além da localização charneira já determinante da tentativa de continuar no território após a II Guerra Mundial, o apetite australiano só poderia ser aguçado pelas perspectivas de petróleo e gás. Mas os responsáveis timorenses que mais apontam o dedo à Austrália não só esqueceram estes interesses, como lhes fizeram o jogo: as dissenções intra-timorenses aproveitam a quem, de fora, nem precisa de dividir para reinar. Quanto a Portugal, sem interesses estratégicos, apenas com obrigações e sentimentos relativamente a Timor, a distância e a falta de capacidades encarregam-se de limitar veleidades interventivas.
Mantenho que esta crise, aproveitando embora a interesses alheios, é de produção timorense. E que o ex-Primeiro Ministro, que continuo a considerar um homem sério, é o principal responsável. Pela crise e pelo seu prolongamento desnecessário. Se ele se tivesse demitido mais cedo, as forças estrangeiras talvez nem tivessem de ter sido pedidas. E ele teria saído mostrando desapego ao poder e com mais dignidade.
Mari Alkatiri governou bem nalguns aspectos, em especial na dura negociação com a Austrália e na criação do Fundo do Petróleo para garantir proventos às gerações vindouras. Onde errou ele? Desde logo ao despedir um terço das forças armadas, convidando à sublevação. Mas também ao manter no governo um ministro com passado criminoso, que lhe arruinou a relação com a Igreja e o Presidente, corrompeu a polícia, armou milícias e atiçou divisões; e que agora se vinga, procurando arrastar consigo o ex-PM. Errou na política salazarenta de não ter dívidas na banca, mas deixando 80% da população sem nada para fazer ou comer. Errou por subestimar a Igreja - num país onde as homilias continuam a ser os «media» - e por esvaziar de poderes o Presidente, desaproveitando-lhe a capacidade de comunicar com o povo - que ele, PM, por inabilidade, só conseguia indispor.
Mari Alkatiri errou, em suma, porque nunca se libertou da matriz totalitária, nem deixou que a FRETILIN dela se libertasse, como se viu no Congresso do braço no ar. A verdade, é que o povo nunca elegeu Alkatiri Primeiro Ministro, como elegeu Xanana Gusmão para a presidência. Em 2001, o povo foi chamado a escolher uma Assembleia Constituinte, que a UNTAET, por pressa e comodidade, como tem notado Pedro Bacelar de Vasconcelos, deixou transformar em Assembleia Legislativa, convertendo o chefe do partido dominante, a FRETILIN, em Primeiro Ministro. Já em 2001 Mari Alkatiri não conseguia conter a tentação totalitária: em plena campanha eleitoral, vangloriava-se de que a FRETILIN ia ganhar com 85% dos votos; e os seus apoiantes ameaçavam os adversários de ir varrer ruas (na altura protestei junto de Alkatiri; como reagiria se só tivesse 60%? Enganei-me por pouco - a Fretilin teve 57,37% dos votos).
Claro que outros actores timorenses também cometeram erros ao longo desta crise. Incluindo o Presidente Xanana Gusmão, que nunca deveria ter-se deixado associar aos militares e polícias revoltosos ou a milícias.
Uns e outros erros são também nossos - de Portugal e da comunidade internacional, por não investirmos suficientemente na assessoria política e técnica das instituições timorenses. Mas ainda podemos compensar. Esta crise abalou Timor Leste e a sua imagem internacional. Mas ainda se pode tirar partido dela como uma oportunidade para reencarrilar a democracia em Timor.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL, edição de 14.07.06)

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