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18 de setembro de 2005

A Europa da Defesa 

Por Ana Gomes

A União Europeia nas suas relações externas tem como objectivos defender a Paz e promover os direitos humanos, a democracia e a estabilidade na boa-governação. Na gestão de crises procura intervir através de uma combinação de persuasão diplomática, cooperação para o desenvolvimento, assistência humanitária, comércio, assistência técnica, apoio à reforma dos sectores de segurança, reconstrução e integração regional. No entanto, em situações extremas, a União tem de estar preparada para contribuições mais 'musculadas', incluindo a intervenção militar - como na operação ARTEMIS, em 2003, em que forças europeias pela primeira vez avançaram para travar massacres iminentes na República Democrática do Congo (no quadro de um mandato da ONU, mas sem acompanhamento de parceiros transatlânticos, indisponíveis).
Como o Ruanda e os Balcãs tristemente ilustraram pela ausência de acção internacional a tempo, a intervenção militar é também uma ferramenta, de ultimo recurso, que deve ser posta ao serviço do direito internacional e do multilateralismo. Ao serviço da «responsabilidade de proteger» que Kofi Annan vem promovendo como principio estruturante de uma ONU reformada, consequência dos direitos humanos e do objectivo da Paz. Principio que decorre do conceito de «segurança humana» e pode assim sobrepor-se à velha «soberania dos Estados».
Na Estratégia Europeia de Defesa que Javier Solana apresentou em 2003 sustenta-se que "temos de desenvolver uma cultura estratégica que promova uma intervenção precoce, rápida e, se necessário, enérgica". A Estratégia identifica o terrorismo, os conflitos regionais e os Estados-falhados como fontes de insegurança que se alimentam mutuamente e por isso, por vezes exigem uma resposta militar da comunidade internacional. O exemplo paradigmático deste nexo era então o Afeganistão, em que tensões regionais, a ausência de um poder central e a presença de movimentos extremistas criaram ambiente fértil para o treino e exportação do 'know-how' terrorista com vários alvos, o mais espectacularmente devastador desferido a 11 de Setembro de 2001. A série de atentados terroristas desde então, incluindo recentemente Londres, demonstram que os fanáticos se multiplicaram, sofisticaram e disseminaram globalmente. A defesa da Europa e do mundo exige assim que a UE esteja preparada para contribuir, no quadro do direito internacional, para a resolução de conflitos regionais e para a estabilização de Estados frágeis, inclusivé por meios militares.
A dimensão militar da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) amadureceu consideravelmente desde o seu nascimento no fim da década de 90 (em consequência do falhanço nos Balcãs, porque justamente antes a Europa não tinha ainda PESC nem PESD). A União impôs-se objectivos ambiciosos quanto à geração de forças de carácter expedicionário e de intervenção rápida em situações de crise. Mas a realidade é que os 25 Estados Membros somam actualmente 2 milhões de tropas, das quais só entre 3% e 4% podem ser projectados fora do continente europeu.
Num contexto de fraco crescimento económico como o actual, e apesar da percepção das ameaças acrescidas, não será fácil que os cidadãos aceitem afectar mais recursos orçamentais à área da defesa, enquanto as Forças Armadas dos 25 Estados Membros não demonstrarem que gastam melhor os ?160 biliões globalmente já à sua disposição. E isso exige que se transformem, adaptem às novas necessidades, se especializem em áreas de excelência e, acima de tudo, que invistam em capacidades de projecção estratégica de forças.
E a melhor maneira de começar é gastar mais racionalmente os cerca de 30 biliões de EUROS que os 25 Estados Membros dedicam à aquisição de material militar. É difícil aceitar 25 políticas de aquisição militar paralelas, concebidas e aplicadas autonomamente, descoordenadamente, muitas vezes em sobreposição, com apenas esporádica cooperação em projectos como o Eurofighter e o A400M. Para além disso, a relutância dos 25 Estados Membros em abrir os mercados nacionais de material militar às regras de concorrência que prevalecem no mercado interno europeu contribui para estratégias de aquisição politicamente ultrapassadas, economicamente ineficientes, opacas do ponto de vista legal e logo, propiciadoras da corrupção. E, acima de tudo, incompatíveis com os objectivos da União no que respeita à PESD.
Mas as doutrinas de defesa estão a mudar e com elas mudarão as políticas de aquisição nacionais. O papel da recém-criada Agência Europeia de Defesa pode e deve ser determinante nesse sentido. A adesão dos Estados Membros da União ao conceito dos 'Battlegroups' - unidades de forças expedicionárias compostas por 1.500 militares de um ou mais países da UE, com vocação para a gestão de crises em cenários hostis e longínquos - revela uma tomada de consciência das prioridades.
Nessa linha, o Ministro da Defesa português sublinhou em entrevista recente ao «Expresso» que as FA portuguesas precisavam de "mais capacidade expedicionária. E mais capacidade conjunta, mais complementaridade, capacidade de modulação e interoperabilidade entre as forças." Em termos de doutrina militar, Luis Amado sublinhou que "precisamos de passar de uma visão, em certos sectores, ainda muito estática e muito territorial das FA, para uma outra com configuração dinâmica, flexível, de reacção rápida e projecção de força, de interoperabilidade e de acção conjunta." Tem razão o Ministro.
Conviria também admitirmos que Portugal tem cometido erros - com responsabilidades partilhadas entre o PSD e o PS - na aquisição de equipamento militar, à luz do contexto em que missões conjuntas impõem interoperabilidade, cooperação e partilha de responsabilidades como prioridades. O contrato de aquisição de submarinos, por exemplo, não responde a qualquer necessidade no contexto da Aliança Atlântica e muito menos no contexto da PESD.
Outro exemplo, resultado da ânsia colaboracionista com a Administração Bush de Paulo Portas, foi a retirada de Portugal do mais emblemático dos projectos militares europeus - o avião de transporte A400M da Airbus - em troca da aquisição de Hercules C-130J da Lockheed Martin (que afinal não concretizou, por se ter sabido das deficiências tecnológicas de que enfermam). A participação nacional no projecto europeu, para além das capacidades tecnológicas de ponta que promoveria no tecido industrial do país, era também estratégica politicamente: tratava-se de inserir Portugal entre as nações que se juntaram para dotar a Europa de um meio militar fundamental - o transporte estratégico - e assim colmatar lacunas graves na autonomia estratégica europeia. Esperemos que o actual governo concretize a alteração de rumo que o Ministro Luis Amado sugeriu. Tanto mais que o retorno ao projecto A400M implicará dar entretanto mais trabalho às OGMA com o «up-grading» dos Hercules C-130 já propriedade da FAP - trabalho que as OGMA estão, de resto, a fazer nos aviões do mesmo tipo pertencentes à Força Aérea Francesa (e para o efeito não lhes falha o apoio técnico da Lockheed Martin).
10 anos depois de Srebrenica, a UE já tem hoje a Missão ALTHEA, com 7.000 homens das EUFOR, na Bosnia-Herzegovina. À medida que as Forças Armadas europeias forem abandonando doutrinas militares baseadas na defesa territorial e que a integração europeia for contribuindo para uma convergência de interesses estratégicos e da percepção de ameaças, mais os governos serão pressionados a partilhar meios militares, cooperar sistematicamente na aquisição de equipamentos e investir na divisão de tarefas e especialização. Só assim a Europa deixará de ser o gigante económico que globalmente se projecta como anão no plano político. Os europeus precisam de melhor Defesa e esperam mais coerência e eficácia da acção da UE na esfera internacional. E o mundo também precisa de mais e melhor Europa, incluindo a da Defesa.
(Escrito em 19.07.05, publicado no «EXPRESSO» em 6.8.05)

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