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28 de junho de 2005

Textos recuperados: "As chamas do Inferno" 

por Vital Moreira

Que Portugal é um País cada vez combustível, isso vamos sabendo de Verão para Verão, à medida que a florestação artificial do País se vai inexoravelmente expandido e que as condições climatéricas se vão tornando mais propícias aos fogos florestais.
Todos os anos se repete a mesma ladainha sobre culpas e responsabilidades, com os críticos a denunciar a falta de meios e a descoordenação no combate aos fogos e com os sucessivos governos a protestar que nunca se gastou tanto dinheiro nesse fim. O que fica normalmente por dizer é que, sem mudanças radicais na política florestal, por mais meios que estejam disponíveis, trata-se sempre e só de paliativos, pelo que todos os anos extensas matas do País serão implacavelmente reduzidas a cinzas.
Sucede que nos habituámos a pensar que se trata de uma fatalidade da natureza e/ou da malvadez dos homens. Alternamos em condenar a canícula do Verão ou o desmazelo dos proprietários florestais (a começar pelo Estado) e a mão criminosa dos incendiários. Não nos damos conta de que a primeira é um dado que não podemos revogar e que os segundos podem ser limitados por adequada prevenção e repressão penal, mas que também não podem ser eliminados.
Como não se cansam de dizer vozes avisadas, os fogos florestais são uma consequência inevitável do tipo de florestação que adoptámos e do Verão quente e seco que temos. Trata-se de uma combinação explosiva, cujas consequências podem ser atenuadas à custa de fortes gastos na prevenção e nos meios de combate aos fogos mas que não podem ser afastadas. Ora se, como nos ensinam os que sabem, as tendências climáticas são no sentido do agravamento, designadamente com o aumento do número de dias com temperaturas superiores a 35 graus, então a única esperança de mudança da situação só pode assentar numa modificação radical do povoamento florestal dominante.
A nossa actual cobertura florestal, caracterizada por extensas manchas contínuas de pinhal e de eucaliptal, especialmente nas serranias do Centro do País, não se limita a fazer da nossa paisagem uma monótona sucessão de tons de verde baço, triste e feio, a contrastar com a beleza não somente das zonas de pomar, vinhedo ou seara, mas também com as matas de carvalhos, castanheiros ou sobreiros e outras espécies nativas, que ainda vão subsistindo por esse País fora. Não é por acaso também que os incêndios florestais se concentram especialmente naquelas grandes manchas contínuas de pinheiro bravo e de eucalipto, que ocupam grandes áreas territoriais entre o Douro e o Tejo.
Ora essa paisagem florestal não é uma criação espontânea da natureza, mas sim o produto bem humano de uma política de "fomento florestal" com mais de um século, que tem atravessado, com notável continuidade, sucessivos regimes políticos e inúmeros governos de todas as orientações. Sistematizada pela primeira vez no chamado "regime florestal" de 1901-1903, ainda no final da monarquia, a política florestal visava promover o revestimento arbóreo dos terrenos improdutivos, com o objectivo de aumentar a riqueza nacional, de beneficiar o clima, de fixar solos nas encostas e montanhas e de regularizar os cursos de água.
A Lei do Fomento Florestal de 1938 foi o instrumento fundamental do Estado Novo nesta área, implementando sistematicamente a arborização dos baldios e das serranias interiores a norte do rio Tejo, incluindo o desapossamento forçado de extensos terrenos comunitários e, mesmo, particulares, não sem a resistência das populações, expropriadas das suas pastagens e matas de logradouro comum. O romance de Aquilino Ribeiro, "Quando os Lobos Uivam", de 1958 (curiosamente publicado no mesmo ano do sobressalto da campanha presidencial de Humberto Delegado), ficou para a história como uma pungente expressão da resistência à violência da Ditadura. À política florestal do Estado Novo se deve, entre outras, a paisagem típica da zona do chamado "Pinhal Interior", bem como a desertificação humana de zonas como a Serra da Lousã, com a expulsão das comunidades pastoris que nelas habitavam.
Com a introdução da indústria da celulose entre nós há meio século, em expansão contínua desde então, ela passou a ser um dos principais factores da florestação, pela propagação do pinheiro bravo e, crescentemente, do eucalipto. As empresas de celulose são hoje as principais responsáveis pela avassaladora eucaliptização do País, quer em implantações florestais próprias ? num curioso fenómeno de integração vertical da "fileira" industrial ?, quer por via de incentivo aos produtores particulares. Os interesses dessa indústria passaram a ser dominantes na determinação da política florestal nacional, conjugando os interesses de proprietários florestais, de madeireiros, da indústria e do Governo ("capturando" especialmente os ministérios da Indústria e da Agricultura), sem outra oposição além da frustre voz de algumas associações ambientalistas.
Num País com escassos recursos energéticos e poucos solos com aptidões agrícolas, a produção florestal chegou a ser elevada ao estatuto mítico de "petróleo verde" por algum ministro mais dado a metáforas empolgantes O "milagre" da florestação cobriu de pinheiros e eucaliptos as encostas das serranias do interior, onde antes vingava somente uma vegetação rasteira e pastavam alguns rebanhos de ovelhas e cabras, deu rendimento inesperado, seguro e sem encargos a proprietários fundiários que se limitam a "arrendar" os seus terrenos às empresas de celulose ou aos seus agentes, e fez do nosso País um grande produtor de pasta de papel, um verdadeiro prodígio tendo em conta a sua situação geográfica e a sua condição ecológica e climática.
Portugal transformou-se assim num país florestal exótico, coberto de espécies alienígenas, especialmente do omnipresente eucalipto, que fazem parecer certas zonas do País uma espécie de província da Austrália, onde nem sequer falta a praga das acácias mimosas a invadir encostas e mesmo várzeas ribeirinhas. Tornámo-nos reféns da indústria da celulose e dos múltiplos interesses que são solidários dela. E pagamos bem caro essa servidão, não somente quanto aos custos ambientais das próprias fábricas, mas também quanto aos impactos negativos na paisagem silvícola, na ocupação do solo, na desertificação de extensos territórios, na pressão predadora do eucaliptal sobre os recursos hídricos e, por último, nos custos e nos sacrifícios dos fogos florestais, que são facilitados e fomentados pelo regime florestal predominante.
Bem podemos denunciar o desmazelo dos proprietários e utilizadores das matas ou punir com mão forte os poucos incendiários que se conseguem apanhar; bem podemos atirar pazadas de dinheiro sobre as chamas, para pagar mais e melhores meios de combate; bem podemos culpar todos os governos por incúria ou incumprimento de promessas. Tudo isso será essencialmente em vão enquanto continuarmos a acumular massas compactas e contínuas de material lenhoso altamente inflamável em zonas inacessíveis e enquanto não se quebrar o círculo vicioso do (des)ordenamento florestal vigente. É essa política que as chamas estivais condenam, como se o seu destino não fosse outro senão o ígneo castigo dos infernos. Como quase sempre sucede, porém, os beneficiários são poucos, os custos são da colectividade e as vítimas são os inocentes. Neste ano já lá vão nove vidas.

(Público, 3ª feira, 5 de Agosto de 2003)

27 de junho de 2005

Equívocos da reforma política 

por Vital Moreira

Em declarações públicas o dirigente do Bloco de Esquerda (BE), Francisco Louçã, manifestou a sua enérgica oposição a duas medidas de reforma política anunciadas pela maioria socialista, ou seja, a reforma do sistema eleitoral dos deputados, criando círculos eleitorais uninominais, e a reforma do sistema de governo das autarquias locais, criando órgãos executivos monopartidários. Mas as duas coisas não podem ser metidas no mesmo saco, nem podem ser apreciadas com a mesma grelha de análise.
A possibilidade de criar círculos uninominais - onde é eleito somente um deputado - nas eleições para a Assembleia da República consta da Constituição desde a revisão constitucional de 1997. A sua primeira concretização em projecto legislativo foi efectuada no primeiro Governo de António Guterres, pelo então ministro dos Assuntos Parlamentares, António Costa. O projecto não vingou essencialmente porque o PSD, cujo apoio é necessário para aprovar tal reforma - já que ela carece de 2/3 de votos -, condicionou o seu apoiou a uma redução do número de deputados, que o PS não podia aceitar.
Na sua oposição à reforma, Louçã disse textualmente, segundo relata "A Capital", que instituiria a "bipartidarização total do sistema político, porque só PS e PSD elegeriam deputados, ficando as centenas de milhares de cidadãos que votam no BE, no PCP ou mesmo no CDS/PP sem voz na Assembleia da República". Esta declaração não tem, contudo, o mínimo fundamento. Primeiro, no sistema proposto, os deputados que passariam a ser eleitos em círculos uninominais seriam menos de metade, continuando os demais a ser eleitos em círculos distritais e num círculo nacional, plurinominais, tal como hoje. Segundo, os eleitores teriam dois votos, um para eleger o "deputado local" no seu círculo uninominal, e outro para eleger os deputados nos círculos distritais/nacional. Terceiro, e mais importante, a repartição dos deputados pelos partidos seria sempre feita globalmente de forma proporcional, ou seja, tendo em conta somente o "segundo voto" dos eleitores e não pelo "voto uninominal", servindo este apenas para escolher os deputados locais, que seriam sempre contabilizados na quota de cada partido.
Portanto, mesmo que os círculos uninominais provocassem uma relativa bipolarização do voto na eleição dos deputados "locais", não existe nenhuma razão para temer que tal efeito contaminasse em larga escala o "segundo voto", provocando uma bipolarização geral do sistema eleitoral. É de lembrar que o sistema eleitoral que serviu de referência à referida reforma eleitoral é o da Alemanha, que revela um índice de proporcionalidade muito elevado e no qual as limitações à representação partidária no parlamento derivam, sim, da "cláusula-barreira" do mínimo de cinco por cento de votos, como condição de acesso ao Parlamento, e não do sistema eleitoral.
No que respeita ao sistema de governo das autarquias locais, os problemas são essencialmente diversos, não devendo ser confundidos. Também aqui, a proposta socialista constitui uma renovação de projectos antigos. As suas principais medidas são conhecidas: (i) acabar com a eleição proporcional da câmara municipal, que hoje faz coabitar a maioria e a oposição no órgão executivo municipal; (ii) fazer eleger o presidente da câmara municipal em conjunto com a assembleia municipal, numa única eleição, sendo presidente o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia; (iii) permitir ao presidente da câmara municipal escolher livremente os vereadores, que deixariam de ser eleitos; (iv) reforçar os poderes de controlo da assembleia municipal sobre o executivo municipal.
Sempre manifestei uma frontal oposição a esta reforma, mas por razões muito diferentes das que são normalmente aduzidas pelos partidos que defendem a manutenção da composição pluripartidária da câmara municipal. De facto, considero que nenhum princípio democrático pode reclamar a existência de órgãos executivos pluripartidários (fora dos casos de coligação). A regra, pelo contrário, é a de que os órgãos executivos devem caber aos partidos maioritários, sob controlo das assembleias, essas sim pluripartidárias e dotadas dos meios necessários para esse efeito.
Não considero, por isso, pertinente essa questão nas razões contra a referida reforma. Pelo contrário, penso mesmo que a coabitação obrigatória da oposição com a maioria na câmara municipal tem sido uma das principais razões para a falta de verdadeira oposição na maior parte dos municípios - dado o compromisso dos vereadores da oposição com o governo da maioria, para não falar dos casos de verdadeira "cooptação" a troco de lugares de vereador remunerado ou de administração de empresas públicas - e para a neutralização da assembleia municipal, que foi reduzida a um órgão decorativo, em vez de ser, como devia ser, o verdadeiro parlamento municipal.
O que é inaceitável no projecto de reforma do Partido Socialista são duas razões essenciais: (i) o presidencialismo municipal anómalo que a reforma criaria, concentrando todo o poder no presidente da câmara, que passaria a ser o único verdadeiro titular do poder executivo, incluindo a livre escolha dos vereadores; (ii) a eleição conjunta do presidente da câmara e da assembleia municipal, acabando com a actual eleição separada.
Na verdade, se esta reforma fosse para a frente, deixaria de ter sentido falar em câmara municipal, que ficaria reduzida ao presidente, "assessorado" por alguns vereadores/ajudantes, que ele escolheria e substituiria com quase total liberdade. Mais grave do que isso, a eleição conjunta implicaria a natural "bipolarização" não somente na eleição do presidente da câmara municipal, mas também ao nível da eleição da assembleia municipal, garantindo na maior parte dos casos uma maioria fiel e obediente ao presidente, tanto mais que o candidato a presidente se encarregaria de controlar a composição da lista a que ele próprio irá presidir. A ameaça à democracia municipal desta proposta de reforma está na inaudita concentração do poder nas mãos do presidente da câmara e na domesticação política das assembleias municipais.
Se se quer ter um regime presidencialista no governo municipal, então impõe-se ser coerente, de acordo com os seguintes requisitos: (i) eleição separada do presidente da câmara e da assembleia; (ii) redução dos actuais poderes da câmara municipal; (iii) reforço dos meios de controlo do executivo pela assembleia. É pena que os pequenos partidos, agarrados à ilusória ideia de manterem alguns vereadores em câmaras municipais, não se dêem conta do verdadeiro risco que os projectos de reforma do PS e o PSD implicam para a democracia local.

(Público, 3ª feira, 21 de Junho de 2005)

21 de junho de 2005

O nome e a coisa 

por Vital Moreira

Um dos principais argumentos dos adversários do tratado constitucional da UE sob um ponto de vista nacionalista ou "soberanista", seja de direita seja de esquerda, tem a ver com a utilização da noção de "constituição", termo este que, a seu ver, só pode ser usado em relação ao Estado, pelo que a sua utilização no caso da UE só poderia ser um equívoco ou, então, esconder a vontade de criar um super-Estado europeu à custa da soberania dos Estados-membros. Importa considerar este argumento.
É evidente que o chamado tratado constitucional é antes de mais um tratado internacional. Mais isso não preclude à partida a sua natureza constitucional. O "poder constituinte" pode revestir muitas formas, inclusive a forma "contratual". Há mesmo constituições aprovadas por tratado internacional, como sucedeu com a actual constituição da Bósnia-Herzegovina, saída dos acordos de Dayton. A própria constituição dos Estados Unidos da América foi elaborada e aprovada numa "convenção" composta por representantes dos Estados-membros da confederação preexistente e depois ratificada internamente pelos mesmos. Por isso, uma coisa é a forma do instrumento jurídico, outra coisa a natureza constitucional do texto normativo em causa. Ou seja, o "tratado constitucional" da UE pode ser simultaneamente um tratado, quando à sua forma, e uma constituição, quanto ao seu conteúdo, enquanto "lei fundamental" de uma entidade política autónoma dotada de certos traços típico de "estadualidade", mesmo sem ser um Estado.
Aliás, se estamos formalmente perante um tratado, negociado e aprovado pelos governos dos Estados-membros no âmbito da conferência intergovernamental (CIG), e agora sujeito a aprovação e a ratificação interna pelos órgãos competentes dos mesmos Estados, de acordo com o paradigma das convenções internacionais, seguramente que a sua formação revestiu porém alguns traços pouco consentâneos com uma visão puramente internacionalista ou intergovernamentalista. O tratado foi em grande parte elaborado fora do quadro de negociações intergovernamentais, no seio de uma "convenção", onde os representantes dos governos eram minoritários, havendo uma forte representação do Parlamento europeu e da Comissão europeia e uma representação ainda mais vasta dos parlamentos nacionais, o que sucedeu pela primeira vez na aprovação de tratados da CE/UE. A participação de representantes da própria UE e dos parlamentos nacionais é completamente estranha ao paradigma intergovernamentalista dos tratados internacionais. Se a isso acrescentarmos que o texto foi posteriormente aprovado pelo Parlamento Europeu, acentuando a componente de "autoconstituição" da UE, fácil é verificar que estamos perante um procedimento novo, que procurou mimetizar elementos de constitucionalismo transnacional do passado.
De resto, o tratado constitucional limitou-se a desenvolver e aprofundar os traços paraconstitucionais preexistentes na arquitectura da UE, como entidade política "a se", dotada de atribuições próprias, de uma ordem jurídica autónoma, de protagonismo na cena internacional, etc., que vêm desde pelo menos o Acto Único Europeu (1987) e principalmente desde o tratado de Maastricht, ou da União Europeia (1992). Entre elas contam-se o primado do direito da União sobre os direitos nacionais, o alargamento das atribuições da UE para fora da esfera económica (projecto da integração política), o aumento dos poderes do Parlamento europeu, designadamente no plano legislativo, a generalização das votações por maioria (qualificada) em vez da unanimidade, a cidadania europeia, a "comunitarização" da área da justiça e assuntos internos (JAI), a instituição da política externa e de segurança comum (PESC), a criação de um representante externo da UE, o "treaty making power" externo da UE, a aprovação da Carta de Direitos Fundamentais, etc. O recurso a uma explícita terminologia constitucionalista representou uma propositada vontade de se assumir como um passo qualitativo em frente na institucionalização da UE como poder político autónomo, embora sem prejudicar a existência nem o cerne da soberania dos Estados-membros (consagrando mesmo um direito de saída unilateral da UE).
Mas, independentemente deste tratado constitucional, desde há muito que a doutrina fala no "constitucionalismo" e no "direito constitucional" da UE. Já em 1981 o conceito de "constituição transnacional" foi invocado a propósito da então CEE. E desde essa altura a conceptologia constitucionalista tornou-se cada vez mais frequente, sobretudo depois do tratado da UE (1992). Existem hoje numerosos escritos sobre a "constituição europeia" e vários manuais de "direito constitucional europeu", incluindo em Portugal. O primeiro grande teorizador da constituição europeia entre nós foi aliás Francisco Lucas Pires, da Universidade de Coimbra, há quase uma década, antes de qualquer projecto de tratado constitucional.
A compreensão da CE/UE em termos constitucionais tornou-se inevitável praticamente desde o princípio, na medida em que ela não podia ser cabalmente concebida e compreendida em termos de direito internacional e de organização internacional, dada a existência de um poder legislativo e de um poder judicial próprio com incidência directa sobre os direitos e obrigações dos particulares (e não somente dos Estados). Depois, quer por via da jurisprudência criativa da Tribunal de Justiça (a quem se deve por exemplo a explicitação do princípio da primazia da ordem jurídica comunitária), quer sobretudo por via dos sucessivos avanços da integração europeia (ampliação de atribuições, decisões por maioria, eleição directa do Parlamento europeu, poderes legislativos deste, cidadania europeia, mercado único, moeda única, abolição das fronteiras, justiça e segurança interna, PESC, carta de direitos fundamentais, etc.), foram-se acentuando os traços insusceptíveis de serem compreendidos no quadro do direito internacional, reclamado por isso uma leitura em chave constitucional.
Porventura o principal impulso da CE/UE no sentido de uma entidade constitucional autónoma em relação aos Estados-membros consistiu na eleição directa do Parlamento europeu (acentuando a vertente não intergovernamental) e, depois, na criação da cidadania europeia (Tratado de Maastricht) e no desenvolvimento de uma teoria de direitos fundamentais face às instituições comunitárias (por acção da jurisprudência do Tribunal de Justiça e depois pela aprovação da Carta de Direitos Fundamentais). Por essas vias, a CE/UE deixou de ser somente uma associação/união de Estados, para passar a ser também uma união de cidadãos, com direitos protegidos contra as instituições da CE/UE. A CE/UE não é evidentemente um Estado, mas também (já) não é uma simples associação de Estados.
A ideia de que a noção de Constituição está exclusivamente vinculada à noção de Estado, não podendo ser usada em relação a entidades políticas trans-estaduais, está ligada à tradicional concepção ?vestfaliana? do Estado, como única entidade politicamente soberana na ordem externa. Porém, na actualidade, essa noção do Estado está ultrapassada e não resiste à emergência de estruturas supranacionais dotadas de alguns traços que tradicionalmente eram associadas à "estadualidade", como o poder legislativo, poderes judiciais, poderes fiscais, poderes de contratação internacional, separação de poderes, "rule of law", direitos fundamentais, "judicial review", etc.. Actualmente a noção de constituição e de constitucionalismo é relevante e fecunda em contextos muito mais amplos de que um estreito constitucionalismo "estatista" e nacionalista se agarra a defender.
Hoje penso que não foi vantajosa a utilização da noção de constituição a propósito do novo tratado da UE, que pouco acrescenta e que deu argumentos desnecessários aos nacionalismos constitucionais de todos os matizes. Mas, com ou sem tratado constitucional, o constitucionalismo europeu já aí está desde há muito, e veio para ficar.
(Público, 3ª feira, 14 de Junho de 2005)

11 de junho de 2005

Dez anos depois 

Quando a meio da década de noventa começámos a estudar o problema de endividamento dos consumidores, a nossa preocupação principal era a de compreender as causas sistémicas que estavam na origem da ?colonização? do sistema judicial pela cobrança de dívidas. A solução tinha de ser procurada a montante, fazendo diminuir a procura ou desviando-a para outras instâncias de resolução de litígios, e não apenas na reforma do sistema.
Na verdade, a liberalização do sistema financeiro, a democratização do acesso ao crédito, a descida das taxas de juro, a estabilidade da zona euro e o aumento dos salários reais permitiam perceber que o fenómeno do endividamento iria ampliar-se a um ritmo muito acelerado. Não era uma questão conjuntural, tocando fugazmente consumidores deslumbrados por uma súbita folga no rendimento disponível. Tinha causas difíceis de remover, como a ausência de um mercado de arrendamento, que fazia do crédito para a aquisição de habitação a parte principal do endividamento. Reflectia, além disso, uma mudança nas atitudes, valores e estilos de vida das famílias urbanas, particularmente nas áreas metropolitanas. Essa mudança viria para ficar e não era o reflexo de uma suposta ?irresponsabilidade? de um qualquer governo, como se veio a provar.
Nesses anos dourados do consumo, o sobreendividamento não era um problema. A palavra era quase desconhecida e os estudos sobre o fenómeno praticamente inexistentes em Portugal. Não havia estatísticas onde elas deveriam estar a ser preparadas (no Banco de Portugal e no INE) o que, de resto, continua a acontecer.
Seguindo uma tradição que nos é própria, resolveu-se então responder ao problema pelo lado mais fácil, começando pelo fim, em vez de ser pelo princípio. Anunciou-se uma lei para a reestruturação das dívidas dos sobreendividados. Não se sabia quantos eram e tudo indicava até que não seriam muitos. Pior do que isso. O projecto que então circulou e que não chegou a ser finalizado previa um processo judicial complexo, caro na sua implementação e com toda a probabilidade de ser excessivamente moroso na resolução de um problema que por definição não se compadece com grandes atrasos.
Num colóquio internacional que então organizámos em Coimbra, saudámos a atenção dada pelo Governo ao problema, mas criticámos a solução proposta, sugerindo algumas alternativas para a gestão do risco do sobreendividamento. Desenvolver de forma organizada e interactiva a observação, a prevenção e a reestruturação, no caso de excesso de dívidas não solváveis, foi o caminho que nos pareceu mais adequado.
A observação permitiria obter e analisar a informação sobre o problema, identificar os perfis de risco, propor medidas, monitorizá-las e avaliá-las. Deveria ser repartida por uma rede povoada de diferentes entidades, desde as que podem recolher informação estatística, às mais vocacionadas para estudos qualitativos.
A prevenção, por sua vez, incluiria várias frentes de batalha: desde um código de conduta para instituições de crédito, à transparência da informação, com especial relevo para a educação financeira. Sustentámos, então, que era na prevenção que deveria incidir a maior atenção das instituições responsáveis pela defesa do consumidor.
Aconselhava-se, ainda, que se pensasse no remédio e que o processo de reestruturação das dívidas, em caso de sobreendividamento, incluísse sempre uma hipótese prévia de mediação, de preferência desjudicializada..
Entre 1998 e 2002, ainda se iniciou algum trabalho. Com a mudança de governo a questão foi enterrada, mas de nada valeu ignorar o problema. Nem a recessão fez travar o aumento contínuo da taxa de endividamento nos anos que se seguiram.
Assim chegámos a 2005. O tempo deu-nos razão. Mas, neste caso, melhor fora que tal não tivesse acontecido. Relembrar hoje esta história serve para mostrar que, apesar dos anos perdidos, não é tarde para começar. Há disponibilidade das associações de instituições financeiras (ASFAC e APB) para uma parceria no domínio da prevenção (voltarei a ela em outra oportunidade). Há alguma experiência acumulada no trabalho da DECO em matéria de mediação. E, no que nos diz respeito, há algum conhecimento adquirido no Observatório do Endividamento, contactos e experiências internacionais realizadas. Se unirmos os nossos esforços não resolveremos o problema de uma vez, mas começaremos a geri-lo como deve ser: observando com informação, prevenindo com a ética e a educação e tratando o sobreendividamento com o remédio adequado, sempre que não haja outra solução.

Território, autarquias locais e serviços públicos 

Por Vital Moreira

Na onda reformista do actual Governo, o ministro António Costa anunciou o propósito de fusão de freguesias e de municípios que tenham população diminuta, que são muitos, sobretudo no caso das freguesias. É uma reforma importante. Mas a questão do ordenamento institucional do território não se limita ao número e dimensão territorial das autarquias locais, abrangendo também a distribuição territorial dos serviços e estabelecimentos públicos. Sobre esta matéria tem-se debatido pouco.
A ideia de fundir ou agregar autarquias locais de dimensão reduzida é uma boa notícia. São impressionantes os números divulgados sobre o número de freguesias com menos de 1000 habitantes (incluindo em áreas urbanas entretanto despovoadas) e de municípios rurais com pouco mais do que isso. A concentração de autarquias permite poupar meios (instalações, equipamento, pessoal, etc.), simplificar a organização territorial e, sobretudo, reforçar as estruturas do poder local. De facto, freguesias e municípios sem dimensão adequada não podem dispor dos meios humanos, técnicos e materiais necessários para o bom desempenho das suas tarefas.
A fusão ou agregação territorial justificam-se ainda mais nas áreas urbanas do que nas zonas rurais, visto que nestas há que ter em conta as distâncias geográficas e não somente a população. Por melhores que sejam hoje os meios de comunicação e de transporte, a distância é sempre um factor negativo. Além disso, nas zonas rurais os factores de identidade local são mais fortes do que nas zonas urbanas, o que joga contra a concentração. Por isso justifica-se uma consideração diferenciada das duas situações.
É evidente que uma operação de concentração de autarquias locais não pode ser feita sem vencer as inevitáveis resistências locais, a começar pelos actuais ou potenciais candidatos a autarcas. Cada freguesia ou município a menos significa umas dezenas de lugares públicos a menos, entre membros de juntas de freguesia e assembleias de freguesia, bem como de câmaras municipais e assembleias municipais. Trata-se sempre de um terreno fértil para a demagogia e o populismo, jogando com as questões de desgraduação local e de rivalidade com as povoações vizinhas.
A definição e implementação de uma reforma destas é tanto mais árdua quanto ela contraria a tendência até agora prevalecente, que tem consistido na criação de novos municípios e de novas freguesias, muitas vezes sem nenhuma justificação racional em termos de administração local, ressalvados os interesses pessoais dos previsíveis candidatos a futuros autarcas. Por isso, a anunciada concentração de freguesias e de municípios deveria ser acompanhada de um congelamento da criação de novas autarquias (e, já agora, do congelamento também da ridícula multiplicação de vilas e cidades com que a Assembleia da República tem desperdiçado o seu tempo, só para satisfazer fúteis interesses localistas...).
Não é menos necessária nem menos complicada a racionalização territorial dos serviços e estabelecimentos públicos locais do Estado nos mais variados domínios (educação, saúde, segurança social, justiça, etc.). A perda de população em muitas regiões do interior, por um lado, e a pressão de interesses locais, por outro, criaram um excesso de equipamentos e de serviços públicos em relação às necessidades em diversas regiões. Há escolas sem número suficiente de alunos, hospitais sem doentes que os justifiquem, maternidades sem parturientes que as mantenham em actividade regular, tribunais sem número de processos bastante, estabelecimentos sociais sem utentes que justifiquem a sua subsistência.
Sucede que, para além da enorme desproporção entre gastos com os meios envolvidos (instalações, equipamentos, pessoal, etc.) em relação aos serviços efectivamente prestados, a qualidade destes deixa muitas vezes a desejar, justamente por falta de escala (instalações inadequadas ou degradadas, equipamentos insuficientes ou antiquados, desmotivação do pessoal, incapacidade para fixar pessoal qualificado, etc.). Os prejudicados são aqueles que alegadamente se quer servir, ou seja, os utentes, que ficariam mais bem servidos noutros estabelecimentos em melhores condições, a troco de um serviço de transportes adequado. A maior parte das vezes a maior proximidade é satisfeita à custa da pior qualidade dos serviços.
É evidente que não pode ignorar-se o princípio constitucional da desconcentração administrativa e o valor da proximidade dos serviços públicos em relação aos utentes. No caso das zonas rurais mais despovoadas, onde a concentração territorial de serviços públicos pode implicar enormes distâncias entre eles, justifica-se mesmo uma política de "discriminação positiva". Impõe-se aqui um sensato equilíbrio e sentido de proporcionalidade. Mas há limites para a dispersão e para o paroquialismo. Há que superar definitivamente a visão de que não pode haver aldeia sem escola primária, município sem tribunal nem hospital, maternidades a esmo, serviços de urgência a meia hora de outros, universidades à porta de casa, etc. O lado reverso de uma excessiva dispersão de serviços e estabelecimentos públicos, para além do seu custo financeiro incomportável (o que se torna mais pesado em tempos de austeridade financeira), é a escassez dos mesmos nas regiões de maior concentração populacional, o desaproveitamento de meios humanos e técnicos escassos e a má qualidade dos serviços prestados.
Também aqui não é de esperar uma estrada real para as mudanças que se impõem. Primeiro, porque uma tal perspectiva vai ao arrepio de um longo período de laxismo e de injustificável dispersão territorial de onerosos serviços e estabelecimentos públicos, de que o triângulo hospitalar Abrantes-Tomar-Torres Novas e a Universidade de Viseu são bons exemplos. Segundo, porque nenhuma povoação gosta de perder estabelecimentos ou serviços públicos, existindo uma cultura de direitos adquiridos nesta área. A reacção aos projectos do anterior governo, de concentração de maternidades e de delegações de serviços de saúde em algumas zonas do país (só para citar a área da saúde), mostra como os interesses locais podem opor uma fortíssima resistência e mobilizar com êxito os sentimentos populares.
Mas, que se saiba, nenhuma reforma que valha a pena pode vingar sem vencer resistências. Há sempre quem tenha vantagens em conservar o "statu quo", ainda que raramente sejam os habituais "suspeitos", ou seja, os utentes. Mas somente em nome dos utentes e dos contribuintes é que merece a pena encetar reformas e levá-las até ao seu termo.

Blogposts (causa-nossa.blogspot.com)
1. Para os opositores à Constituição europeia que acumulam essa posição com um filo-americanismo (ou melhor: filobushismo) primário (e são muitos), a França passou rapidamente de besta a bestial. Quando liderou a oposição europeia à intervenção norte-americana no Iraque ela era a expressão de chauvinismo estreito e de falta de solidariedade ocidental da "Europa velha". Agora que o referendo francês chumbou a Constituição europeia, a França passou a representar o que de mais sensato e virtuoso pode existir na Europa. Tanto assim que no seu entendimento a rejeição francesa pode mesmo dispensar uma decisão portuguesa sobre o tratado constitucional, como se a França nos pudesse representar mesmo sem mandato...

2. As incríveis declarações de A. J. Jardim sobre os que escrevem nos jornais continentais não é somente mais exemplo de rotunda má-criação, mas também de total ausência de sentido de responsabilidade pública e de dignidade institucional. Por que maldição teremos de continuar a aturar os dislates desta criatura? Professor universitário

(Público, 3ª feira, 7 de Junho de 2005)

Sem rumo na tempestade 

Por Vital Moreira

Não sei se na noite de domingo houve alguma troca de felicitações recíprocas entre os líderes da frente do não -- Le Pen, De Villiers, Fabius, Arlette Laguilier e Marie-George Buffet -- para celebrarem a sua rotunda vitória no referendo do tratado constitucional da União Europeia em França. Se o pudor político prevaleceu, nem por isso deixam de se poder felicitar pelo sucesso comum.
Cumplicidades assumidas ou não entre os rejeicionistas, torna-se evidente que a constituição europeia foi vítima de uma heteróclita coligação negativa, onde se misturaram, sem tom nem som, os mais viscerais inimigos da integração europeia desde o início, alguns dos que sempre com ela estiveram e lhe deram os sucessivos impulsos para a frente e os que alegadamente a rejeitaram em nome de uma outra constituição "mais federal" ou "mais europeia". O facto de os segundos e terceiros terem ajudado os primeiros a acertar um profundo golpe na própria UE ? cujas consequências ainda resta apurar, mas cuja gravidade não pode contestada ?, diz bem dos equívocos com que se jogou este referendo. A dimensão de populismo e de demagogia que sempre acompanha os exercícios referendários, sobretudo os que têm uma amplitude ?holística? como este, permitindo aos eleitores responder às perguntas que eles próprios quiserem (mesmo que não tenham nada a ver com o objecto do referendo), ajuda a explicar estas alianças politicamente "contra-natura".
Tudo e o seu conntrario pôde ser invocado contra o texto constitucional: nacionalistas e soberanistas contra um suposto super-Estado europeu escondido por detrás da constituição, e federalistas radicais, insatisfeitos pela sua timidez no sentido integracionista; ultra-liberais, por ela não dar suficiente lugar ao mercado, e partidários do modelo social francês, denunciando a deriva neoliberal e "anglo-saxónica" da UE; católicos fundamentalistas, pela falta de referência à herança cristã da Europa, e laicistas radicais, pela referência expressa às religiões. Contra a constituição foram invocados os argumentos mais reaccionários, como a xenofobia mais rasteira e o nacionalismo mais pedestre, e os mais despropositados, como a ideia de que ela "constitucionalizaria" o modelo de economia de mercado, quando este está "constitucionalizado" desde 1957 no Tratado de Roma que instituiu as Comunidade Económica Europeia. Não faltou quem assacasse à Constituição o ela deixar margem para restaurar a pena de morte, para proibir o aborto ou para pôr em causa o laicismo francês! Houve quem o dissesse convictamente e houve ainda mais quem o acreditasse.
Parece evidente que o tratado constitucional foi sobretudo o bode expiatório dos males da França e das dificuldades que defrontam a UE. Para além do descrédito do governo de direita em França, o que contou foi o desemprego, o débil crescimento económico, as deslocalizações de empresas, o alargamento da UE a Leste, a globalização, a insegurança quanto ao futuro do modelo social francês, em particular, e europeu em geral. A infeliz e inoportuna coincidência da polémica sobre a adesão da Turquia ou sobre a directiva Bolkestein (criação do mercado interno dos serviços), bem como a entrada em vigor da liberalização das trocas comerciais com a China, tudo isso contou para o pretexto global de que foi vítima a constituição. O protesto contra o que está (e Bruxelas tem as costas largas) e o medo do desconhecido explicam o rotundo desaire sofrido pela UE em França.
O facto de a constituição não ter a ver com nada disso ? e poder ser pelo contrário um antídoto contra alguns dos males e impasses em causa ? não contou nada. Na verdade, não se tratou de rejeitá-la pelo que ela é em si mesma, mas sim como expressão do descontentamento e da insegurança dos franceses perante a crise do actual modelo económico e social. A circunstância de o provável afastamento da constituição não afastar o desemprego, nem as deslocalizações de empresas, nem a invasão dos canalizadores polacos, nem a inundação dos têxteis chineses, nem o dumping fiscal dos países do leste e o dumping social da Índia e da China, nem a liberalização dos serviços públicos, nem a necessidade de reforma do modelo social francês --, nada disso consegui parar a deriva rejeicionista. Tampouco serviu o simples pensamento de que só a constituição, para além de menos liberal e mais social do que os actuais tratados, poderia conferir às instituições da UE o ?elan? necessário para enfrentar a crise e relançar o projecto europeu.
Há evidentemente muitos argumentos politicamente coerentes para rejeitar a Constituição europeia. Ninguém se surpreende com a posição dos nacionalistas de direita ou de esquerda, ou dos comunistas e outras forças politicas contrárias à economia de mercado, com ou sem modelo social europeu. Sempre estiveram e hão-de estar contra a UE e contra o avanço da integração europeia. Votam contra a Constituição agora como teriam votado contra o tratado de Maastricht ou contra o Tratado de Roma. Louve-se-lhes a coerência. Mas existe também um argumento cínico contra a Constituição europeia, que é o dos que a rejeitam pretensamente "em nome da Europa" e de em nome de uma "outra Constituição". No seu argumentário, entre nós representado pelo Bloco de Esquerda, o tratado constitucional deve ser rejeitado não por ser uma constituição mas sim por não ser uma genuína constituição aprovada em assembleia constituinte; não por trazer Europa a mais, mas sim por trazer a menos; não por ser um avanço constitucional, mas sim por ser pouco mais do que a constitucionalização do que está, incluindo o modelo económico neoliberal; não por ser não ser melhor do que o que está, mas sim por ser muito recuada quando comparada com o que deveria ser.
Mesmo que a constituição correspondesse a essa caricatura (e não corresponde!), não existe maneira mais simples, nem mais cínica, de rejeitar qualquer avanço do que em nome de uma maximalismo consabidamente utópico, ou pura e simplesmente indefensável. Assim se justifica rejeitar a alternativa que realmente existe em nome de algo que não existe nem pode existir, para assim justificar a manutenção do que está. A verdade é que nenhum dos anteriores tratados instituidores da UE foi tão democraticamente participado na sua elaboração como este, numa "convenção" onde participaram representantes das instituições europeias e nacionais, nomeadamente do parlamento europeu e dos parlamentos nacionais, tendo sido expressamente aprovado pelo primeiro, para além de o dever ser pelos segundos; nenhum tratado anterior foi submetido a tão amplo escrutínio e a tão prolongada discussão pública; nenhum avança tão decididamente na democratização das instituições e na transparência da governação europeia (mais poderes para o parlamento europeu e para os parlamentos nacionais, iniciativa legislativa popular, reuniões públicas do conselho de ministros quando no exercício de poderes legislativos); nenhum foi tão longe na protecção dos direitos dos cidadãos europeus face às instituições europeias (constitucionalização da Carta de Direitos Fundamentais); nenhum assumiu tão decididamente a UE como entidade política autónoma na cena internacional (política externa e política de defesa comum). É tudo isso que se perde sem o tratado constitucional.
A rejeição da Constituição europeia não significará somente prescindir de uma UE mais forte, mais democrática, mais transparente, com instituições mais eficientes e, mesmo, mais social. Implica a abertura de uma crise de confiança e de desorientação que só pode traduzir-se numa paralisia mais ou menos demorada, quando a globalização, a ofensiva de hegemonia mundial dos Estados Unidos e a emergência de novos poderes de vocação mundial, como a China, mais precisam do protagonismo da Europa. Em vez de avançar com rumo, a Europa fica à deriva sem leme no meio da tempestade.

(Público, 3ª feira, 31 de Miro de 2005)

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