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2 de janeiro de 2005

Falam, falam... 

... mas o ano de 2004 não foi tão mau como dizem. Bem sei que assistimos à reeleição de W. Bush, à fuga do nosso primeiro-ministro para Bruxelas, à derrota da Selecção diante dos gregos e à demissão de Henrique Chaves. É certo que o défice orçamental se agravou, o desemprego aumentou, o investimento baixou, a competitividade piorou e a confiança se afundou. Só que tudo isto são minudências face ao acontecimento colectivo mais marcante dos últimos tempos - pela primeira vez, os portugueses aprenderam a rir de si próprios. Não me refiro ao governo Santana Lopes nem à Quinta das Celebridades, mas sim ao fenómeno de catarse humorística protagonizado por Ricardo Araújo Pereira. Num ano de muito sol e de poucos motivos para festejar além da vitória do Porto na Liga dos Campeões, foram muitas e boas as lições da política, da economia, da Europa e da trupe do Gato Fedorento.

De Bruxelas veio a confirmação de uma velha suspeita - a de que a Comissão Europeia tem uma actuação eminentemente taticista no exercício dos seus poderes de supervisão. Crivada de funcionários em lugares-chave oriundos dos países mais poderosos, sensível aos interesses dos grandes grupos económicos europeus e carente de meios extensivos de controlo, a Comissão é por natureza obediente para com os grandes e rigorosa para com os pequenos que se põem a jeito. Opções políticas à parte, é notável o zelo que Bruxelas coloca no exame das contas públicas portuguesas, ao mesmo tempo que se deixa alegremente ludibriar por gregos, franceses, italianos, belgas, alemães e sei lá quantos mais nesse jogo irreal em que se transformou o Pacto.

Igualmente reveladora foi a decisão sobre o caso EDP. Estou entre os que pensam que o modelo desenhado por Carlos Tavares e João Tallone era o melhor, garantindo a solidez da fileira energética nacional sem comprometer a concorrencialidade no sector. Mas eis que o projecto esbarra em dificuldades que a proverbial inépcia da nossa diplomacia económica em Bruxelas não poderia antever. Para a tecno-estrutura da Comissão, o dossiê EDP era um presente demasiado bom para ser desperdiçado. Casos similares aprovados no passado noutros estados-membros? Eram "diferentes" (como se fosse possível haver dois casos rigorosamente iguais), alegou a comissária que não quer ser pussicat e de quem (não) se aguardam futuramente decisões de igual bravura.

As exportações deram-nos outra boa lição. Há algum tempo que se instalou entre a generalidade dos economistas a convicção de que só é possível fazer crescer a economia nacional através da actividade "exportadora". Ora, já se percebeu que ela não dá sinais de recuperação, esgotado que está o modelo de especialização da maioria das empresas produtoras de bens "transaccionáveis" (quando é que se acaba com esta nomenclatura serôdia?). O crescimento, a verificar-se, terá de se sustentar no conjunto dos sectores de actividade nacionais e no robustecimento dos seus factores dinâmicos de competitividade. Para podermos continuar a acreditar na miragem exportadora teremos de assistir, num curto espaço de tempo, a modificações profundas no tecido industrial português e contar com a improvável ajuda de uma valorização do dólar face ao euro.

De lição em lição, o povo voltou a pregar uma boa partida aos economistas. Ao arrepio da lógica, o consumo privado voltou a aumentar, provocando um novo agravamento da balança comercial. Aparentemente, a crise ainda não bateu nos fundos dos bolsos dos consumidores portugueses, apesar de os comerciantes do meu bairro me afiançarem ter sido esta a pior campanha de Natal de que guardam memória (coisa que, aliás, me habituei a ouvir ano após ano). Aguardemos pelos indicadores económicos do último trimestre e preparemo-nos para uma nova surpresa. Enquanto o pau vai e vem, o povo lá vai pensando: "Eles falam, falam, mas o melhor é ir gastando, enquanto há."

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 30 de Dezembro de 2004

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