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29 de novembro de 2004

A fórmula de Bolonha 

Por Vital Moreira

Num recente colóquio sobre ensino superior -- noticiado pelo diário "As Beiras", de Coimbra --, um dos intervenientes (aliás vice-reitor da Universidade de Coimbra) declarou que "licenciaturas de três anos não servem para nada". Essa afirmação, como facilmente se deduz, reporta-se a uma das opções da nova arquitectura do ensino superior nos termos da "Declaração de Bolonha", um compromisso de nível europeu (e não somente no plano da UE, como por vezes se lê), tendente, entre outras coisas, a aumentar a comparabilidade das formações e a mobilidade de estudantes e professores no espaço europeu.
Quanto aos graus académicos, a referida Declaração assenta numa sequência de três graus, ou seja, um grau básico de 3-4 anos, um grau de mestrado, a obter ao fim de 5 anos (contando o primeiro grau) e um grau de doutoramento, desejavelmente alcançável ao fim de 8 anos de estudos no total. Isto como regra geral, sendo porém consentidos regimes especiais para algumas formações, por exemplo para medicina.
No que respeita a Portugal, trata-se de uma verdadeira revolução no ensino superior, no sentido da simplificação, encurtamento e previsível "democratização" (especialmente quanto ao ensino pós-graduado). Par começar, há que reduzir a 3 os actuais 4 graus académicos existentes entre nós (bacharelato e licenciatura no ensino politécnico, e licenciatura, mestrado e doutoramento no ensino universitário). Segundo, temos de encurtar a duração das licenciaturas universitárias, que em muitos casos ainda têm 5 anos. Terceiro, é preciso comprimir as formações pós-graduadas, designadamente o mestrado, que deve poder ser obtido ao fim de 5 anos (dissertação incluída), quando hoje tem normalmente uma duração de 7 anos (5+2). Quarto, o mestrado passará a ser um grau necessário para ao acesso ao doutoramento, o que hoje não sucede entre nós.
A tardia e escassa discussão que tem existido sobre o "processo de Bolonha", no que respeita à fórmula dos graus académicos (pois ele envolve outros pontos não menos importantes, como por exemplo um "sistema de créditos" uniforme) tem incidido especialmente sobre a questão da duração do primeiro grau (chamemos-lhe "licenciatura", para simplificar), o que tem repercussão directa sobre o mestrado, visto que este tem de ser alcançável em 5 anos, só havendo portanto duas combinações possíveis: ou 3+2 ou 4+1. No caso do ensino universitário, tanto quanto é dado ver pelas escassas opiniões e tomadas de posição vindas a público, as preferências vão mais para a segunda fórmula, ou seja, 4+1.
Os argumentos são conhecidos, mesmo os menos confessáveis. Primeiro, como decorre da afirmação acima citada, entende-se, que em geral uma formação de três anos seria sempre deficitária para as respectivas saídas profissionais. Segundo, é muito mais fácil reduzir os actuais cursos de 5 anos para 4, mantendo a mesma filosofia, do que "partir" a actual licenciatura em dois ciclos, com um ciclo inicial de apensas 3 anos, pois isso exigira reformular integralmente a actual lógica dos cursos. Terceiro, a redução da licenciatura para 3 anos correria o risco de uma diminuição considerável do número de alunos no sistema, com reflexos imediatos nas finanças das universidades e na impregabilidade dos docentes. Quarto, essa diminuição seria ainda mais grave se não fosse estendido ao mestrado o financiamento do orçamento do Estado, pois então este passaria a financiar apenas três anos, em vez dos actuais cinco anos da licenciatura.
Não obstante, penso que vale a pena examinar os fortes argumentos que têm sido aduzidos a favor da posição contrária, ou seja, a fórmula 3+2. Primeiro, desde sempre, o primeiro grau no ensino politécnico tem a duração de três anos, sem razões de queixa. Ora não tem sentido aumentar essa duração para 4 anos, com o inerente desperdício de recursos e atraso na entrada na vida profissional, ou então estabelecer um sistema dualista, com 3 anos no politécnico e 4 anos no universitário para o mesmo grau. Segundo, embora se admita sem dificuldade que um grau de curta duração pode não ser bastante para várias das profissões que actualmente carecem de licenciatura, sem dificuldade se concordará que isso não sucede em relação a todas. Por isso a solução estaria em discriminar as profissões para as quais bastaria a nova licenciatura curta e aquelas para as quais seria exigível o novo mestrado (agora necessariamente reduzido a 5 anos e portanto muito mais acessível). É a solução britânica desde há muito e foi o que se fez em Itália, por exemplo, na implementação do processo de Bolonha, aparentemente com êxito. Terceiro, a fórmula 3+2 possibilitaria uma maior economia e flexibilidade no ensino superior, permitindo aos interessados uma formação e uma saída profissional menos onerosa, sem prejuízo de retoma dos estudos mais tarde para concluir o segundo grau. Quarto, só esse esquema é que obrigaria a uma reformulação profunda da actual lógica conservadora e sobrecarregada do ensino universitário, que derrota uma grande percentagem dos seus estudantes e é responsável pelas altas taxas de insucesso, transferindo para o mestrado a formação mais carregada e mais exigente que hoje consta dos primeiros anos em algumas licenciaturas (por exemplo, Direito). Ao invés, a solução dos 4 anos corre o risco de fazer "encabidar" numa licenciatura de 4 anos tudo o que está nos actuais 5 anos, à maneira do "Rossio na Betesga", tornando a "emenda pior do que o soneto". Quinto, a fórmula do primeiro grau de curta duração, de nível menos exigente, permitiria a obtenção da licenciatura a muitos estudantes que hoje ficam pelo caminho, quer por dificuldades económicas, quer simplesmente por falta de qualidades de trabalho ou, mesmo, de capacidade intelectual (digo, sem receio de ser contraditado, que uma parte considerável dos que entram hoje na universidade não têm capacidade para terminar a licenciatura, com a exigência que ela hoje tem, acabando no abandono do curso ou em licenciaturas tiradas a ferros ao fim de muitos e penosos anos, às vezes a título prémio pela insistência...).
Seja como for, há algumas coisas que me parecem seguras. Antes de tudo, embora isso fosse concebível, não se afigura razoável, em termos de legibilidade e comparabilidade do sistema de ensino superior, adoptar soluções distintas para os diferentes subsistemas (universitário e politécnico), muito menos uma solução "ad hoc" para cada curso ou para cada instituição (o que seria verdadeiramente absurdo). Segundo, a solução a seguir não pode ser deixada em última instâncias às instituições de ensino superior, pois não se trata de um assunto do foro da sua autonomia, mas sim de uma questão essencial de política educativa, de interesse geral, com repercussões fundas na vida económica e profissional, que cabe ao Governo e ao parlamento.
No entanto, pelo défice de discussão pública do tema e pela aparente passividade do Governo neste matéria, é de temer que tudo acabe como quase sempre em Portugal, isto é, pela confirmação política, à última da hora, de factos consumados à margem dos normais procedimentos deliberativos democráticos.

(Público, Terça-feira, 2 de Março de 2004)

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