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9 de outubro de 2004

A aldeia  

Por Vicente Jorge Silva

No extraordinário filme de M. Night Shyamalan, "The Village" (cujo título português deveria ser A Aldeia e não A Vila, convenção administrativa incaracterística entre a aldeia e a cidade), uma comunidade vive isolada, pelo medo, do mundo exterior.

É um isolamento no espaço mas também no tempo, como finalmente perceberemos. Essa situação tem sido referida como uma pertinente metáfora da América pós-11 de Setembro, mas a riqueza do filme não se esgota aí. De facto, uma das contradições mais perturbantes dos nossos dias é que, quanto mais alastra o processo de globalização, maior se revela a tendência para as crispações comunitárias e os reflexos condicionados pelo medo do outro.

Quietos, calados, tementes ao desconhecido, conformados com a ordem que assegura a paz do reino ou, tão simplesmente, da aldeia. Portugal viveu, durante a autarcia salazarista, uma situação metafórica semelhante ? que só se tornou insustentável com o impasse decisivo da guerra colonial. Entretanto, ao longo dos últimos trinta anos, fomos acreditando que a instauração de um regime de democracia representativa e a integração económica e política na Europa nos tinham libertado, definitivamente, dos fantasmas dessa comunidade pequena, fechada, asfixiante, desse "orgulhosamente sós" que era lei na nossa aldeia. Ora, começamos a constatar hoje que os medos secretos instalados no subconsciente dos aldeões ? mesmo daqueles supostamente urbanizados ? não se desvaneceram. E isto porque, no fundo, a pequenez da aldeia se mantém, em larga medida, a mesma que quase sempre foi, apesar das benesses que lhe trouxe o novo estatuto europeu. Se uma voz dispõe do poder inusitado de fazer-se ouvir de forma excessivamente sugestiva e dissonante na aldeia portuguesa, os temerosos poderes públicos tocam a rebate contra o seu dom maléfico de influenciar e contaminar as almas. Como chegou essa voz a ter o poder que lhe foi concedido e como chegou a vez de a quererem silenciar?
Talvez seja oportuno começar por lembrar que na aldeia portuguesa não se resolveu quase nenhuma das questões que a tornam pasto fácil dos mais serôdios clientelismos políticos e económicos, por vezes enredados numa teia de dependências mútuas que estimulam o comércio de favores entre quem governa o Estado e quem manda nas empresas. Não se criaram regras que contrariassem efectivamente a promiscuidade entre poderes que deveriam estar separados e com autonomia assegurada. A famosa sociedade civil continua a ser uma entidade marginal esmagada pelo peso dos cartéis (e agora, adicionalmente, pela extrema concentração dos media). Os artifícios empresariais - sobretudo os mais obscuros e ruinosos, apesar do aparato de prosperidade que não cessam de ostentar ? alimentam-se da protecção e assistência estatal, desde que haja uma qualquer moeda de troca compensadora para ambas as partes. E quando uns e outros se debatem em situação de aperto e salve-se quem puder (que é aquela em que se vive hoje), a sofreguidão com que recorrem ao contrabando dos interesses dispensa já o pudor das aparências.

Não é normal, mesmo num país (mais propriamente: numa aldeia) onde a normalidade se tornou retórica, que um episódio como a demissão de Marcelo Rebelo de Sousa da TVI tenha neutralizado literalmente toda a actualidade política (incluindo as repercussões do congresso do Partido Socialista, a saída anunciada de Carlos Carvalhas da liderança do PCP ou o discurso do Presidente da República no 5 de Outubro, que, aliás, deveriam ter sido temas de reflexão nesta crónica). A verdade, porém, é que estamos perante uma dupla, gigantesca e inédita anormalidade, mesmo tendo em conta os padrões portugueses. Primeira anormalidade: um formato de intervenção política televisiva sem paralelo conhecido na Europa e, até, no conjunto das democracias ocidentais, cujo protagonista goza do privilégio único de perorar ? sem contraditório, acolitado por um reverente apresentador - durante a parte nobre do telejornal. Segunda anormalidade: a forma canhestra, subserviente, quase caricatural (típica de uma pequena comunidade de interesses a nível de aldeia) como o presidente do canal de televisão se verga às pressões públicas com vista ao silenciamento da sua vedeta principal.

Conheciam-se, é certo, as frenéticas declarações de hostilidade do presidente da Distrital do Porto do PSD e, recentemente, do ministro Gomes da Silva, contra as opiniões do antigo líder social-democrata nas suas últimas palestras dominicais na TVI. Ora, se a normalidade vigorasse, essas declarações teriam o efeito contrário ao pretendido: perante tão ostensivas e abusivas intromissões na independência editorial do seu canal, o respectivo presidente ? até por uma questão de credibilidade pública e respeito para consigo próprio ? faria questão de ignorá-las ou repudiá-las e manter a confiança na personalidade a quem confiara um tempo de antena verdadeiramente privilegiado e de invejável audiência. Ainda se poderia perceber, de um ponto de vista meramente lógico, que Pais do Amaral tentasse "domesticar" Marcelo, depois ter recebido pressões secretas dos meios políticos e económicos a quem deve ou de quem espera favores. Moralmente não seria mais nobre, mas seria, apesar de tudo, menos obsceno e menos comprometedor para ele. Agora expor-se à vergonha, à desonra e ao descrédito de aceitar a interferência política directa e pública que visava o silenciamento de Marcelo e admitir que este aceitaria pactuar com isso, é algo que desafia a imaginação (mesmo que a TVI se encontre numa situação financeiramente desesperada). Ou será que, na tradição do Big Brother ou da actual Quinta das Celebridades, o presidente da TVI decidiu assumir-se finalmente como actor perante as câmaras ocultas de um novo ?reality show? e consumar aí o seu ?hara-kiri??
Mas o simbólico suicídio empresarial de Pais do Amaral tem como contraponto o que pode constituir um suicídio político deste Governo (ou, pelo menos, do seu porta-voz). Um Governo que se exibe neste ?strip-tease? integral da sua fragilidade perante um comentador que o incomoda e, aparentemente, o aterroriza, é um Governo que tem medo de si mesmo. É, além disso, por cruel ironia, um Governo que oferece de bandeja a Marcelo Rebelo de Sousa três oportunidades de ouro com as quais, porventura, ele nunca terá sonhado (mesmo nas suas mais pérfidas fantasias maquiavélicas): a primeira permite-lhe mostrar o temor que inspira e provar o fundamento das suas razões; a segunda converte-o numa espécie de vítima emblemática das novas formas de censura que se preparam nos bastidores da concentração dos media; finalmente, a terceira, catapulta-o para um protagonismo político provavelmente sem precedentes (depois da popularidade que conquistou nas suas palestras como o mais influente ?opinion maker? português). Pior ? ou melhor, conforme as perspectivas ? era impossível.

Pode e deve discutir-se o formato perverso que promoveu esse protagonismo, ao arrepio das regras da equidade jornalística e política, mas não apenas porque quem ocupa esse espaço defende, eventualmente, opiniões opostas às nossas (que diríamos se fosse o contrário?). Esses formatos televisivos são, de resto, um mero produto da ausência de normas e instrumentos de regulação que, há longos anos e ao longo de sucessivos governos, vem favorecendo o abastardamento dos padrões éticos e deontológicos dos media. Pelo ruído ensurdecedor que introduz na nossa aldeia e pelas preocupações que justamente suscita, a demissão de Marcelo da TVI é um oportuno sinal de alerta para as actuais ameaças às liberdades básicas de expressão, informação e opinião em que se fundamenta o pluralismo democrático. A não ser que, como parece querer o poder político, nos fechemos definitivamente, a sete chaves, no interior da nossa comunidade do medo, prisioneiros de um inimigo invisível que paira lá fora ? e que representa apenas uma projecção fantasmagórica da nossa própria vulnerabilidade.

(Diário Económico, sexta-feira, 8 de Outubro de 2oo4).

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