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7 de setembro de 2004

Transparência e Justiça Fiscal 

por Vital Moreira

Entre as "sete medidas para um programa de esquerda" propostas por Luís Campos e Cunha aqui no PÚBLICO há dias consta a de pôr termo ao sigilo fiscal, nomeadamente no que diz respeito às declarações de rendimentos, a exemplo do que sucede em alguns países escandinavos, solução que o autor considera preferível à extinção do sigilo bancário para efeitos fiscais, que pode ter efeitos colaterais negativos sobre a confiança no sistema bancário.
Aqui há uns anos, uma escola superior de Lisboa publicou a lista dos beneficiários de bolsas de estudo acompanhada da capitação do rendimento dos contemplados, que tinha justificado a regalia. O facto desencadeou iradas reacções por parte dos interessados, com protestos de violação da vida privada e outros direitos humanos. Ora, o que suscita perplexidade é que seja possível beneficiar de isenções fiscais, com base em insuficiência de rendimentos, sem ser obrigado a disponibilizar publicamente as respectivas declarações fiscais. Isso devia valer para as isenções de propinas, para as regalias tributárias e para os subsídios públicos de qualquer espécie, especialmente quando estejam condicionados à situação económica dos beneficiários.
Nada há de pior para a credibilidade e sustentabilidade de um sistema fiscal do que a sensação generalizada da sua injustiça relativa, sobrecarregando indevidamente os titulares de rendimentos do trabalho dependente em relação aos rendimentos do capital e das profissões liberais. A periódica divulgação da média do IRS pago pelas profissões liberais e pelos empresários não faz mais do que confirmar as mais fortes sspeições de generalizada evasão fiscal por quem mais deveria pagar. E nem tudo deriva do regime especialmente generoso que a própria lei confere aos titulares desses rendimentos, sobretudo em matéria de despesas deduzíveis ao rendimento colectável, onde pode entrar tudo e mais alguma coisa. Um módico de transparência fiscal poderia ser decisivo na diminuição dessa flagrante iniquidade fiscal.
Uma interpretação extremista da norma constitucional sobre o "rendimento real" no que respeita à tributação das empresas - esquecendo que a letra da Constituição usa o advérbio "fundamentalmente" (e não "exclusivamente") e que o rendimento real não tem de coincidir sobre o rendimento declarado pelos interessados - conduziu à escandalosa situação do IRC, em que a esmagadora maioria das empresas declara sistematicamente prejuízos durante anos consecutivos, sem que nada lhes suceda, continuando mesmo muitas delas a beneficiar de subsídios e apoios públicos, como se fossem zelosas cumpridoras dos seus deveres tributários (e não estivessem também a distorcer a concorrência).
A principal função do sistema fiscal - a própria Constituição o diz - é a satisfação das necessidades financeiras do Estado e das demais entidades públicas. Ora uma das consequências das doutrinas neoliberais, no sentido da redução do papel do Estado, nomeadamente no que respeita às políticas sociais, tem sido a de forçar a diminuição das receitas fiscais, para desse modo justificar a baixa das despesas sociais, por falta de capacidade orçamental. Trata-se de uma tendência geral, mas se fosse necessário apontar um exemplo flagrante, bastaria mencionar a política fiscal do Governo de Bush nos Estados Unidos, caracterizada por maciças baixas de impostos para os mais ricos, seguidas de enormes cortes nos programas sociais. Um conhecido crítico desta política, Paul Krugman, professor em Princeton e cronista do "New York Times", já lhe chamou a política "dooh nibor", ou seja, Robin Hood (Robin dos Bosques) ao contrário, tirando aos pobres para dar aos ricos. Em vez de determinar a carga fiscal em conformidade com os encargos resultantes das funções do Estado, democraticamente definidas, os governos invertem as coisas, reduzindo primeiro a carga fiscal, sempre fácil de "vender" politicamente, para depois invocar a falta de receitas para cortar no financiamento das tarefas públicas. A política da redução de impostos tornou-se um dos pontos principais da agenda política das camadas mais abastadas contra o modelo do "Estado social".
Para além das políticas de redução de impostos, outra das razões para a perda de eficácia do sistema fiscal está no abuso dos instrumentos fiscais para a promoção das mais diversas políticas, umas plenamente justificáveis, como a protecção do ambiente ("fiscalidade verde"), outras porém carecidas de suficiente racionalidade e mesmo de eficácia, quando comparada a perda de receita com os resultados obtidos. Como foi posto em relevo recentemente por um dos nossos mais credenciados fiscalistas, o prof. José Xavier de Basto, o sistema fiscal encontra-se demasiado sobrecarregado por excepções e regimes especiais, que o tornam excessivamente complexo, comprometendo a sua eficácia, até por dificultarem a fiscalização e facilitarem a evasão fiscal. Nalguns casos, essas regalias fiscais servem para alimentar uma verdadeira "indústria das deduções fiscais", como sucede entre nós com os programas de apoio à poupança, que beneficiam essencialmente as instituições financeiras, sem contribuição assinalável para os objectivos de incentivo à poupança pretendidos. Outra característica desses programas, altamente onerosos em termos de "despesa fiscal", está na sua regressividade, visto que eles beneficiam maioritariamente segmentos sociais titulares de médios e altos rendimentos, contrariando, se não anulando mesmo, o princípio da progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal.
Numa perspectiva de esquerda, torna-se evidente a falta de uma visão consistente da questão fiscal. Perante o abalo sofrido pelo modelo social-democrata tradicional, caracterizado, entre outras coisas, pela centralidade do imposto de rendimento pessoal, com taxas altamente progressivas, pela desconfiança em relação aos impostos indirectos, considerados socialmente regressivos (dada a maior proporção de rendimento consumido nos titulares de baixos rendimentos) e pela tendência para pôr a cargo do sistema fiscal numerosos objectivos extrafiscais, tem sido notória a sua incapacidade para uma resposta coerente à ofensiva neoliberal no sentido da tendencial eliminação do "Estado fiscal", especialmente no que diz respeito aos impostos directos. Por vezes, causa surpresa ver a facilidade com que se junta à agenda neoliberal, como sucedeu recentemente entre nós com a pacífica eliminação do imposto sobre sucessões e doações.
Sem um sistema fiscal eficaz e equitativo, não há políticas sociais que resistam. Seria bom que no actual debate doutrinário e político que se desenrola no PS este tema tivesse a atenção que merece.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Há personalidades cujo desaparecimento deixa um vazio impreenchível muito para além do círculo dos seus amigos e admiradores. É o caso de Luís Nunes de Almeida, juiz do Tribunal Constitucional desde a sua criação em 1982 e seu presidente desde o ano passado. Em certo sentido ele representa a história da justiça constitucional entre nós, sob a égide da Constituição de 1976, pois integrou a Comissão Constitucional (1976-83), foi protagonista da revisão constitucional de 1982, que criou o TC, e contribuiu decisivamente para a afirmação deste como órgão supremo da justiça constitucional. São pessoas deste gabarito que fazem a história das instituições. Tendo compartilhado com ele alguns desses passos, é com enorme pesar que o vejo partir tão prematuramente.

2. Passados quase sete anos sobre a revisão constitucional de 1997, que extinguiu os tribunais militares fora de situações de guerra, vai finalmente entrar em vigor a lei que procede à sua efectiva extinção. Embora tardio, trata-se de um passo decisivo no sentido da extinção dos foros especiais e da plenitude da jurisdição civil. Um passo em frente na civilização democrática.

(Público, Terça-feira, 07 de Setembro de 2004)

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