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12 de agosto de 2004

Que organização é esta? 

Quem se afasta do mundo português durante cerca de três semanas arrisca-se a falhar momentos irrepetíveis. Foi o que me aconteceu durante um dos períodos mais excitantes da história recente de Portugal - a chegada ao poder do novo primeiro-ministro e o cunho de originalidade que introduziu na gestão dos negócios da república. É claro que procurei logo recuperar o tempo perdido com uma revista de imprensa que mãos amigas haviam seleccionado durante a minha ausência, mas cedo verifiquei que os registos analíticos se ficavam pelos remoques às trapalhices da constituição do elenco governativo e da sua atribulada tomada de posse. Sobre os nomes, uma profusão de comentários biográficos, leves e inócuos como é da praxe. Sobre a orgânica do novo executivo e a leviandade com que foi preparada ainda consegui detectar um punhado de comentários ligeiros à farsa da deslocalização. Mas sobre a matriz de funcionamento do governo, a sua estrutura, pouco ou nada li, como se se tratasse de uma questão menor ao lado das histórias rocambolescas da corte. Pois bem, sem que ninguém tenha dado conta, Portugal entrou no clube dos case studies ilustrativos do que não se deve fazer na governança do Estado e é um sério candidato à conquista do troféu Ignobel da gestão política.

Começo por confessar um preconceito antigo - sou avesso a estruturas dirigentes pesadas. Em todos os domínios da gestão, inclusive a governativa, os executivos querem-se curtos e ágeis. A extensão da gama de áreas de intervenção e de pastas ministeriais em nada contribui para uma melhor gestão da coisa pública, embora seja muito prática para acomodar parceiros de coligação e afins. O preço a pagar é a fragmentação excessiva das matérias e a multiplicação dos canais decisórios, quando o que seria desejável era, por um lado, uma nova agregação das áreas funcionais do governo em torno de um número reduzido de pastas fortes e, por outro, a extinção das pastas virtuais. Não é de agora, mas nunca algum português entenderá a necessidade de haver ministros sem ministérios, casos do ministro da Presidência, do ministro-adjunto e do ministro dos assuntos parlamentares. Se a maioria dos assuntos que lhes competem releva da intendência administrativa, coloquem-se intendentes no lugar dos ministros. Se têm a seu cargo dossiês tão específicos que não encaixam em nenhum ministério, é porque esses dossiês não carecem de intervenção governativa, pelo menos a nível ministerial. Se, por fim, o critério é a gratidão ou a confiança pessoal do primeiro-ministro em certas pessoas, nada melhor que integrá-las no seu gabinete ou no seu círculo privado de consultas. Mais eficácia e menos despesa, por favor.

Foi, de facto, uma oportunidade totalmente esbanjada por Santana Lopes, a de demonstrar ser capaz de transformar uma combinação instável de desconhecimento e instinto numa fórmula virtuosa e inovadora de arquitectura do poder. A impreparação teve como resultado a cedência ao facilitismo e à lógica cortesã das vaidades e das conveniências de salão. Suspeito que pagaremos caro este exercício de acrobacia política. É que, além da manutenção dos habituais três ministros sem pasta, vimos desnecessariamente multiplicadas, trocadas ou baralhadas algumas das competências-chave da governação, o que fatalmente acarretará ineficiências, gastos desnecessários e desespero dos cidadãos e dos agentes económicos.

Que lógica poderá ter presidido à separação do trabalho da segurança social (e da qualificação profissional), em detrimento da família e da criança? Seguindo tal critério, quem cuida da terceira-idade, dos deficientes e das minorias em geral? Que boas razões estarão por detrás da nova mudança de tutela das comunicações para as obras públicas? A vontade de António Mexia em nomear o conselho de administração dos CTT? Quem acredita que dois ministérios distintos - com designações tão barrocas quanto Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional e Ambiente e Ordenamento do Território - vão conseguir pegar de caras o problema da qualidade de vida territorial no nosso país? Porquê a cedência ao lobi do turismo algarvio na criação de um ministério sectorial sui generis, com a sede do protocolo em Lisboa e o almoxarifado em Faro?

Quanto a partilhas de competências, não disponho de estatísticas fiáveis mas apostaria em que o actual executivo bate todos os recordes de confusão funcional. O mar, as águas, os recursos naturais, o ordenamento do território, a inovação, os fundos estruturais ou a sociedade de informação vão passar a confrontar-se com tutelas múltiplas e certamente dissonantes. É verdade que perdemos a final contra a Grécia, mas merecíamos tamanha punição?

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 12 de Agosto de 2004

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