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22 de junho de 2004

A refundação da União Europeia 

Por Vital Moreira

A aprovação da Constituição europeia não poderia falhar uma segunda vez, sob pena de descrédito e impasse de funestas consequências. Depois da concretização do alargamento a 25 membros e do desconforto provocado pela forte abstenção nas recentes eleições europeus, incluindo o reforço de posições antieuropeias em alguns Estados-membros, os líderes europeus tinham de revelar a determinação e a flexibilidade necessárias para chegar a um acordo que restabelecesse a confiança na UE e permitisse "dar a volta por cima". Conseguiram-no!
Como é próprio destes exercícios, o "tratado constitucional" -- que, apesar das alterações, não se afasta muito do projecto elaborada pela Convenção presidida por Giscard d'Estaing ao longo de 2002-2003 -- representa um compromisso de diversas correntes e sensibilidades, presentes na integração europeia desde a sua origem. Por um lado, entre a linha federalista e a linha soberanista nacional, mais uma vez protagonizados pelo Reino Unido; por outro lado, entre a linha mais liberal-conservadora e a linha social-progressista em matéria económica e social. O aprofundamento dos traços integracionistas é evidente (reforço dos poderes do PE, presidente permanente do CE, dependência da Comissão face ao PE, política externa e de defesa comum, explícita afirmação da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional, etc.); mas isso está longe de representar o fim da soberania dos Estados-membros. A linha liberal do mercado único europeu, baseada na concorrência e na liberdade de estabelecimento, é reafirmada; mas os traços sociais saem igualmente reforçados ("economia social de mercado", "serviços de interesse económico geral", direitos sociais da carta de direitos fundamentais, etc.), viabilizando por isso o "modelo social europeu" e deixando amplitude suficiente para diferentes orientações políticas, de acordo com as forças políticas dominantes no PE, por um lado, e no Conselho Europeu e Conselhos de ministros, por outro lado.
Tomadas em consideração todas as inovações no seu conjunto, a Constituição Europeia constitui uma verdadeira refundação e reordenação da UE. Unificação institucional, pondo fim ao dualismo CE-UE, fusão dos respectivos tratados, melhor definição de princípios e das atribuições, incorporação da carta de direitos fundamentais, maiores poderes do Parlamento europeu, maior envolvimento dos parlamentos nacionais, presidente próprio do Conselho Europeu, regra da decisão por maioria qualificada (em vez da unanimidade), maior papel dos cidadãos (direitos fundamentais, iniciativa legislativa popular), política externa e defesa comum (incluindo um ministros dos negócios estrangeiros próprio) --, eis o conjunto de pontos principais que fazem da Constituição Europeia um notável passo em frente na transformação da UE em entidade política plurifuncional (e não somente votada a fins económicos, como era inicialmente a CEE) assente simultaneamente numa cidadania europeia e numa união de Estados. A nova definição de princípios e de atribuições e o novo quadro institucional (parte I), bem como a incorporação da carta de direitos fundamentais (Parte II), fazem toda a diferença em relação aos tratados existentes.
Com a aprovação da Constituição europeia conclui-se um processo iniciado na cimeira de Laeken (Bélgica) de Dezembro de 2001, que instituiu a "Convenção para o futuro da Europa", composta por representantes do PE e da Comissão, bem como dos parlamento e governos nacionais, a quem coube preparar o projecto do novo tratado. Tendo em conta essa composição, bem como a transparência e abertura dos seus trabalhos ao exterior, incluindo a participação de numerosas organizações da "sociedade civil europeia", e se juntarmos o acompanhamento público do debate nas cimeiras europeias até à sua aprovação final, pode afirmar-se sem margem para contestação que este tratado é de longe o que dispôs de maior participação procedimental. Basta comparar com o secretismo que rodeou entre nós a negociação da recente Concordata com o Vaticano, cujo texto só se conheceu depois da assinatura! Se há alguma coisa de que a Constituição europeia não pode ser acusada é de ter sido ?cozinhada? nas costas da opinião pública. Considerando que ela ainda vai ter de ser aprovada pelos parlamentos nacionais e/ou por referendos nacionais antes de ratificada pelos chefes de Estado dos 25, com o debate que esse processo desencadeará, então não será ousado dizer que poucas constituições nacionais, se alguma, terá alguma vez passado por tantos procedimentos e crivos democráticos.
A fase seguinte consiste justamente na aprovação e ratificação nacional da Constituição, de acordo com os procedimentos constitucionais de cada país. Nalguns bastará a aprovação parlamentar. Em vários dos Estados-membros haverá referendos, não estando garantido o seu desfecho favorável em alguns deles, nomeadamente no Reino Unido. Tudo indica que Portugal vai adoptar a via referendária, a ter em conta as posições tomadas pelas diversas forças políticas, do PND ao BE, não sendo de prever que o Presidente da República, a quem compete convocá-lo, rejeite uma proposta da AR nesse sentido. A importância do novo tratado constitucional justifica o referendo popular. No entanto, ele levanta vários problemas, nomeadamente a formulação da(s) pergunta(s) a serem colocadas aos cidadãos e a data mais apropriada para realizar a consulta popular.
Segundo a CRP não pode haver um voto popular directamente sobre o próprio texto do tratado constitucional, mas somente sobre questões concretas nele envolvidas. A dificuldade está em formular uma ou mais perguntas (preferivelmente só uma, par eliminar o risco de respostas discrepantes) que condensem o fundamental das questões políticas compreendidas na constituição europeia. Não se afigura ser tarefa fácil, sobretudo tendo em conta o critério exigente estabelecido nesta matéria pelo Tribunal Constitucional no caso da abortada tentativa de referendo europeu de 1998 sobre o tratado de Amesterdão.
Quanto à data do previsível referendo, afigura-se que ele deve ter lugar após as eleições regionais deste Outono, ainda este ano ou o mais tardar no início de 2005, ou seja, antes de a agenda política nacional começar a ser dominada pela aproximação do ciclo eleitoral iniciado pelas eleições locais de Outono do próximo ano. Sendo evidente que o referendo vai consistir numa opção "sim ou não", colocando face a face essencialmente as posições pró-UE (ou seja, o PSD e o PS) e as posições anti-UE ou eurocépticas à direita e à esquerda -- além dos desejáveis grupos cívicos independentes em ambos os campos --, há todo o interesse em que ele seja realizado tão longe quanto possível de disputas eleitorais, onde os alinhamentos políticos e partidários são muito diferentes.

(Público, 22 de Junho de 2004)

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